ALÔ, ALÔ, CHAMANDO, por Eduardo Haak

AINDA ESTOU AQUI Fernanda Torres estava um chuchu em sua estreia na TV, 1983, Eu prometo, uma daquelas besteiradas sem fim que a Janete Clair escrevia e que deve ter inspirado o Dinho Ouro Preto a sempre ver a Rede Globo com uma arma na mão (quando aparece o Francisco Cuoco, adios televisão, etc.). Janete morreu enquanto escrevia a besteirada (Clô, em O astro, sugerindo que levassem não sei quem pra casa de helicóptero, já que o helicóptero estava “enferrujando na garagem”; você entraria num helicóptero desses?) e Fernanda Torres, então com novíssimas bochechas eróticas (dezoito anos), estava com uma adorável cara de maconheira fazendo papel de uma das filhas do Cuoco. Talvez Fernanda concorra ao Oscar esse ano. Já estou até vendo a cena, and the Oscar goes to, fogos espocando na Vila Madalena, a Fernandinha com a estatueta na mão, close no Mauricinho Lírico (v. Marcelo Mirisola), Brasil-sil-sil-sil-sil, e, sim-como-não?, o Tema da vitória do Ayrton Senna tocando. (Você já corou de vergonha só de ler essas linhas? Eu já.)

MYANMAR Horrenda essa história dos rapazes vítimas de tráfico humano no sudeste asiático. (Myanmar parece nome de imobiliária fuleira da Praia Grande.) Desde que eu vi The deer hunter, Michael Cimino, 1978, o zoinho puxado berrando “mao!” e descendo a mão na cara de Robert de Niro e Cristopher Walken, obrigando-os a jogar roleta russa, que, admito, eu tenho um pé atrás com o sudeste asiático. (Horrenda mesmo a história toda, mas já até imagino a Netflix fazendo um filme no estilo kitsch-netflix com o episódio. Afinal, nada se cria e a vida é um filme ruim onde nós, atores pra lá de sofríveis, interpretamos papéis invariavelmente idiotas, etc., etc.) 

(Se fosse feito um filme fortemente xenófobo como Expresso da meia-noite – o carcereiro balofo da prisão turca morrendo com a nuca atravessada por um prego – ou mesmo The deer hunter – o zoinho puxado levando um tiro na testa – podia até que ficar legal.) 

TELMO MARTÍRIO Lembrando-me aqui de Telmo Martino (1931-2013) e rindo de coisas escritas por ele, “Janete Clair é uma escritora que se mudou tão rápido do Meier para o Leblon que se esqueceu de tirar o pinguim de cima da geladeira”. (Sério, só na cabeça da Janete helicóptero ser guardado na garagem de casa – não em um hangar – e sua, entre aspas, manutenção seja dar uma voadinha com ele de vez em quando pra “tirar a ferrugem”.) Vou ver o que tem sobre o Telmo (v. Joelho de Porco, Telmo Martírio) na internet. Nada. Uns obituários protocolares e um texto curto do Paulo Nogueira. Nada além disso. Como pode? Acho que foi o Paulo Francis que disse que subdesenvolvido não tem memória. Touché, touché.

GRACINHA Desde 1989 eu votava na FMU (Fui Mal na USP) da Rua Iguatemi. Há uns anos a FMU fechou esse campus e votei em duas eleições num colégio na Rua Cojuba. Fui transferido à revelia para uma faculdade na Rua Casa do Ator, onde anulei meu voto na eleição Lula Bolsonaro, e em janeiro desse ano pedi transferência para uma seção eleitoral perto de casa, na Escola Nossa Senhora das Graças, Gracinha, onde fui aluno entre 1978 e 1984. O prédio do Gracinha foi razoavelmente modificado, ampliado, etc., mas conserva bastante coisa de quarenta anos atrás. Talvez por alguma razão contratual, ainda há um telefone público no mesmo lugar, no corredor interno do piso térreo, junto à escadaria. No segundo turno, Nunes Boulos (votei em Nunes), encontrei-me com o Lobo, que foi meu colega ali no Gracinha, além de amigo próximo por alguns anos. Não o via desde 2004, quando nos esbarramos na Rua Tabapuã, ele indo ao dentista, eu indo sabe-se lá fazer o quê. Lobo está com a mesma cara de sempre (parece aquele tarado que estalqueia a piranha no clipe de Rainbow in the dark, do Dio). Era uma figura divertida. Veio para o Gracinha expulso (convidado a se retirar) do Dante. Tinha uma porrada de irmãos bem mais velhos, porras loucas highbrow dos anos 1970, então Lobo sabia de um monte de coisas que nós, menininhos cabaços de onze, doze anos, não sabíamos. Conheci o Plínio Marcos através do Lobo, por exemplo. Ele nos chamava de Boneca do Negrão, que é a maneira como o Paco chama o Tonho em Dois perdidos numa noite suja. Manjava um bocado de política e geopolítica, estando mais à direita no espectro. Ao contrário do que o povinho mais enragé pensa, o Gracinha nunca foi apenas um reduto de esquerda caviar (avant la lettre). Era (e creio que continue sendo) um blend de gente da altíssima burguesia que não estava nem aí para nada, nem para ninguém, gente da alta burguesia querendo fazer contatos (diretores da Pirelli que doavam bolas de vôlei pra escola para serem paparicados pela APM, etc.), quatrocentões querendo dar uma de Orlando Villas-Boas, gente de esquerda que, com extensa formação em militância e canalhice, sabia parecer significar mais do que os outros, gente de classe média aspirante a puxa-saco, não importa que saco (o saco dos altíssimos burgueses ou dos comunas), e, por fim, gente de classe média, meio quebrada e sem maiores convicções.

20/12/2024        


ALÔ, ALÔ, CHAMANDO, por Eduardo Haak

PER DONARE Se a segunda lei da termodinâmica, a entropia, fosse a lei absoluta que rege o universo, o universo já teria se esgotado, game over, c’est fini. Aparentemente, os declínios e as decadências são compensadas por uma antientropia – o universo é constantemente renovado por dados que não estavam dados nele de início. Algo de fora o nutre, em suma. O perdão (ao menos o perdão cristão, e talvez não só ele), se bem observado, é uma antientropia – per donare, completar o dom, completar o que foi dado. O perdão, bem mais do que uma, entre aspas, lei moral, é o elemento constitutivo fundamental de que o universo é feito. O autor desse pensamento? Olavo de Carvalho. Como um sujeito com esse altíssimo calibre intelectual foi se meter com essa escória da direita brasileira pra mim é um enigma.  

DAVID NEVES Sempre me lembro de Muito prazer, encantador filme de David Neves, 1979, como um instantâneo daqueles raros e isoladíssimos momentos em que o brasileiro (ou o ser humano?) experimenta algum apogeu, apogeu esse invariavelmente seguido de uma violentíssima e inexplicável queda. “Crônica de costumes com leves tintas de drama”, pode-se definir assim o filme. Está tudo bem (maravilhosamente bem) no Rio de Janeiro de 1979. Os sócios de um escritório de arquitetura (Cecil Thiré, Otávio Augusto, Antonio Pedro) tocam suas vidas prósperas e sem afetações. São casados com mulheres bonitas e interessantes (exceto Antonio Pedro, cuja solterice é alvo daquelas especulações de sempre, etc.). Mas o tédio conjugal se insinua e os conflitos sociais rondam por ali, na zona sul carioca, ainda articulados de maneira meio frívola, brincalhona. (Vão brincando, vão.) Apesar da malemolência e da aparente estabilidade daquele mundo, é sabido que o tempo corre (v. Usain Bolt) e que o infinito arranjo de que a realidade é feita sempre está se desarranjando e se rearranjando em novas formas. E que esse processo sempre traz consequências imprevisíveis, talvez mais imprevisíveis ainda em se tratando de Brasil. “Alguma coisa vai dar muito errado no final dessas contas, mas o quê?”, é o que parecem se perguntar os dois casais, sentados lado a lado, no final do filme. “1979” se esvai, segundo a segundo, nos levando para 1980, 83, 1997, 2004, 2028, o esgarçamento, a degradação, etc. Mas nem precisamos esticar tanto a linha temporal. Em Fulaninha, filme que Neves dirigiu em 1986, meros sete anos depois de Muito prazer, a joie de vivre carioca já soa totalmente falsa, ersatz, “a festa já acabou há anos e se esqueceram de avisar os penetras mais recentes”. O que em Otávio Augusto, Cecil e Antonio Pedro era jogo de cintura, charme e saber-viver, em José de Abreu e Claudio Marzo é cafajestagem predatória.

MARROM GLACÊ Pegava muito bem o Ronaldo Resedá, dançarino, cantor, coreógrafo, etc. O clipe de Marrom glacê, 1979, foi rodado no extinto (e demolido) Buffet Torres, Rua Horácio Lafer, 430, Itaim-Bibi, São Paulo. 

ANDY WAHROL Se não insistirmos em ver em Wahrol aquilo que não há nele, ele é um ilustrador divertido e até que interessante. Tudo nele é jocoso e fortemente irônico. Como realização plástica, visual, é de uma modéstia exemplar. Daqui a duzentos anos talvez alguém gargalhe olhando para a serigrafia do Elvis Aaron Presley fantasiado de cowboy e se pergunte, “quem era esse sujeito com essa cara estupidamente bovina?”.

CAPAS DA PLAYBOY QUE NÃO EXISTIRAM, MAS QUE MERECIAM TER EXISTIDO Ná Ozzetti, em julho de 1988. Quem tem alguma dúvida sobre o estrago que uma Playboy com a Ná Ozzetti teria feito nessa época, olhem a foto da moça na capa de seu primeiro álbum. (A propósito: muito legal a música A olhos nus, a versão do álbum Ná e Zé, o Zé é o José Miguel Wisnik, autor do indispensável O som e o sentido, livro de onde o Vladimir Safatle tira todas, entre aspas, suas ideias sobre música.)  

16/12/2024

ALÔ, ALÔ, CHAMANDO, por Eduardo Haak

TOMAR BANHO DE CHAPÉU Se aquele bolha do Antonio Abujamra voltasse do além e me perguntasse, “Eduardo, o que é a vida?”, eu responderia: a vida é um filme ruim, onde nós, atores pra lá de sofríveis, interpretamos papéis invariavelmente idiotas. Nossa única, entre aspas, salvação, nossa única possibilidade de dignidade é que podemos cultuar uma consciência aguda, sem qualquer “não é bem assim”, de que a vida é exatamente isso, um filme idiota, etc.

ESPERAR PAPAI NOEL Fernanda Torres, com as bochechas mais eróticas do que nunca, cotada para Oscar. O filme é dirigido pelo mauricinho lírico, dono do banco “que nem parece banco”, etc. (Marcelo Mirisola com livro novo, Espeto corrido. Confiram.)

DISCUTIR CARLOS GARDEL Gosto muito de Blecaute, livro que Marcelo Rubens Paiva lançou em 1986. Quando o mais baixo estrato da militância esquerdista esperava que ele fosse passar uma quarta marcha e falar explicitamente de coisas que ficaram apenas implícitas em Feliz ano velho, Marcelo veio com um livro que era (é) uma ode ao vazio, a um universo que, súbita e inexplicavelmente, perde a inteligibilidade. Marcelo naquela época vivia dizendo coisas que deviam arrepiar “petistas” e tipos afins. Lembro-me de ele falando na Paula Dip (1987, 88, Paulista 900, Rede Gazeta) que ele tinha estado em Cuba recentemente e que, bem, ele tinha visto a merda que era viver num “país de funcionários públicos” (sic). Lembro-me de ele dizendo que o prefeito que até então (anos 1990) havia feito mais coisas em benefício dos portadores de necessidades especiais tinha sido o Paulo Maluf. Na verdade Paiva até hoje emite declarações desse tipo. Ri muito quando ele falou de um amigo que era plantador de maconha e bolsonarista. 

JAIR JÁ ERA Bolsonaro e um punhado de oficiais em maus lençóis por causa daquela tentativa de golpe de estado em que uma horda de animais vandalizou Palácio do Planalto, STF, etc. Na época eu achava que o Alto Comando do Exército não ia se queimar por um tipo tão chinfrim quanto o Jair Messias. No final das contas, a despeito da adesão de um oficial ou outro, “kids pretos” indo prender e matar o Xandão (Lula e Alckmin também seriam mortos), o que de fato aconteceu foi o que previ, os quinze generais do Alto Comando não endossaram a maluquice criminosa de Jair & os Aloprados.

DEMOLIÇÕES O Extra da Juscelino Kubitschek finalmente demolido. No terreno vão construir algum centro empresarial cheio de Eudes, “os colega (sic) da firrrrma”. Em meus cinquenta e três anos vi o terreno abrigar o depósito do Mappin, o Mappin Itaim e o Extra. 

FAVELADOS Nicodemos era a maior favela do Itaim-Bibi. Ficava também na Juscelino. Ouvíamos histórias de que os moradores de lá se esfaqueavam em brigas por causa do precário abastecimento de água, etc. Outra favela aqui do pedaço era a Cidade Jardim. É nela que William Hurt é largado, agonizante, em O beijo da mulher aranha, Hector Babenco, 1985. 

TRÓPICO DE CÂNCER, ENFISEMA, ETC. Leio que Kate Bush foi fumante (de cigarros) dos nove aos quarenta e dois anos. Quem é velho o suficiente talvez se lembre das propagandas dos cigarros Hollywood, com o planador e Wuthering heights e com o balão e Strange phenomena. Leio também que David Lynch está com enfisema, depois de ter fumado por sessenta e seis anos (dos oito aos setenta e quatro). Diz não se arrepender de ter fumado, e acredito. Lynch usufruiu de uma das coisas que mais amava por mais de seis décadas, além de ficar bem à beça nas fotos fumando. 

OLAVO TEM RAÇÃO Lembrando-me aqui que há alguns meses Heloísa de Carvalho, a filha deserdada pelo Olavo, disse que o pai era frequentador do Madame Satã nos anos 1980. Isso quer dizer que se você baixasse na Conselheiro Ramalho numa noite qualquer de 1984 é muito provável que encontrasse  por lá Cazuza, João Gordo e Olavão vendo as perfórmances da mulher repolho. O Madame, hoje, não passa de uma festa de Halloween brega.

 

01/12/2024