ALÔ, ALÔ, CHAMANDO, por Eduardo Haak

TEMPO DO ONÇA Sempre me pergunto por que "o" onça, artigo definido masculino. E terá esse onça algo a ver com once, "once upon a time"?


MÁ VIU, LINDÔ Ainda não li a biografia do Jacinto Figueira Jr., O Homem do Sapato Branco, escrita por Maurício Stycer, mas pelas entrevistas concedidas pelo elemento desconfio que ele não captou o essencial do biografado - o humor, o deboche, a ironia, o pendor para o non sense. Jacinto foi um notável protagonista da estética da violação e do mal-estar que entrou nos usos e costumes do Ocidente a partir dos anos 1960, mas sobretudo dos 1970 (e que foi moeda corrente entre nós até os primeiros anos do século XXI). Enfatizar em Jacinto "o homem que introduziu o mundo-cão na TV brasileira" é uma simplificação simplória.


COMANDO DA MADRUGADA Na verdade todas as figuras de destaque na mídia, no período que citei, exploraram a estética da violação e do mal-estar. (Quem não vê a continuidade entre "o mundo-cão na TV" e o ideário de grupos artísticos então radicais como o Fluxus - Joseph Beuys, etc. - é mulher do padre.) Lembro-me de um programa do Chacrinha em 1982 em que houve um concurso de quem comia mais bananas. A imagem de um sujeito obeso, suando frio, fazendo sinal de positivo, mastigando a quadragésima banana enquanto um médico tirava sua pressão me vem claramente à memória. Um caso de bestialidade narrado pelo Afanásio Jazadji, ele fazendo a suposta voz do animal implorando ao tarado, "vem, Terto, vem…". Goulart de Andrade mostrando travestis fazendo aplicações caseiras de silicone industrial (ou exibindo os cadáveres podres de PC Farias e da namorada sendo autopsiados). Em suma, coisas que estavam mais para happening e perfórmance do que para jornalismo informativo.


SUPLA E OS PUNKS DE BUTIQUE Divertidíssimo o nome da nova banda do papito. Outro dia me lembrei da banda Os Excomungados, especificamente da canção "Union Carbide dá amostra grátis pra dois mil na Índia". A canção se refere ao vazamento de um gás altamente tóxico ocorrido numa fábrica da Union Carbide em Bhopal, Índia, em 1984, que matou dezenas de milhares e sequelou sabe-se lá quantos.


COMPOSITORES O idioma inglês faz a distinção entre o camarada que escreve canções, songwriter, e o tovarisch que lida mais diretamente com claves de sol, bemóis, sustenidos, etc., esse, sim, o composer. Faz sentido e, às vezes, faz muito sentido. Sempre tenho vontade de rir quando qualquer Zé Mané que fica lá, proclamando suas frustrações amorosas numa musiquinha com dois acordes, é apresentado como compositor.


LOBÃO E HERBERT Eu tenho um palpite nunca aventado sobre a implicância do Lobão com o Herbert Vianna (superada, ao que parece). Observem as canções de amor dos dois. O discurso do Herbert é aquele interminável chororô do sujeito que não pega mulher nenhuma. Já o discurso do Lobão é o do homem autoconfiante que sabe que suas blandiciosas palavras de sedução vão colar, sempre. Indo no popular, Herbert é o Waldick Soriano e Lobão, o Wando.

 

CAPAS DE PLAYBOY QUE NÃO EXISTIRAM, MAS QUE MERECIAM TER EXISTIDO Graziela Gonçalves, em qualquer mês de 2006. Graziela é a viúva do Chorão, CBJr. Além de bonita, tem um jeito vibrante e despachado que me agrada muito. Vou com a cara da moça.


FILMES QUE NÃO EXISTEM, MAS QUE MERECIAM EXISTIR "Cancelamento", direção de Walter Hugo Khouri, 2023. Marcelo está envolvido com Ana, uma assessora de imprensa que só chega ao orgasmo quando é esbofeteada e xingada com determinados insultos na cama. (Os insultos são, para a sensibilidade contemporânea, B.O. total.) Marcelo se desinteressa por Ana ao conhecer Berenice, uma alpinista que ele conhece no Pico das Prateleiras, Itatiaia, RJ. Ana se vinga da rejeição de Marcelo acusando-o publicamente disso e daquilo (violência doméstica, etc.). A reboque de Ana, dezenas de mulheres aparecem fazendo a Marcelo acusações semelhantes (violência, assédio, estupro), o que faz ele acabar sendo preso. Algum tempo se passa ("corte de continuidade", na terminologia de roteiro cinematográfico). Ana, apesar de tudo, ainda é intimamente apaixonada por Marcelo. Decide então corromper um agente penitenciário para que possa fazer, com identidade falsa, visitas íntimas ao ex no presídio. Após alguns encontros íntimos pautados pelo constrangimento mútuo, Ana finalmente se solta e implora a Marcelo, "me bata, me xinga daquelas coisas todas". Fim.


PIADA VELHA Qual a diferença entre a mulher e o disco (de vinil)? É que o disco você põe no buraquinho pra ele cantar e a mulher você canta pra pôr no buraquinho. (No embalo dessa, vai outra, tirada de um dos discos do Costinha: mulher (feia) é que nem violino, você vira a cara e taca a vara.)

(30/07/2023)



ALÔ, ALÔ, CHAMANDO, por Eduardo Haak

A PROVÍNCIA DE SÃO PAULO Bom dia, ô meus! Quem escreve aqui é o colunista dessa ilustre folha, Adoniram Baboseira de Ulhoa Bela Cintra. Como todos sabem, São Paulo é uma cidadezinha provinciana onde moram vinte e cinco milhões de paulistanos - um arrabalde onde imperam a fofoca, o diz que me diz, o "quem chifrou quem" e o bairrismo puro e simples. Estava ontem eu no meu cafofo no Cemitério da Quarta Parada Dura (com o valor do IPTU resolvi morar num túmulo, especificamente no túmulo do samba, de onde recentemente foi exumado o sambista trapalhão Mussum) em companhia do meu gato, o Borba. Borba Gato é um felino muito simpático, mas ficou meio arredio depois que uns malfeitores puseram fogo na estátua dele, acusando-o de ter escravizado uns índios BDSM numa masmorra sadomasoquista em idos-índios tempos. Como eu dizia, estava eu no meu túmulo conversando fiado com o Borba quando vi, vocês nem imaginam quem, a divindade greco-paulistana Jovem Pã, o desencadeador do pânico, da agorafobia e das transmissões radiofônicas em amplitude modulada. (Jovem porque esse Pã é "de menor", tá ligado, mano?) Perguntei ao Jovem Pan, "Firmeza aí?". Ele respondeu, "É nois na fita". "Tá colando aqui nessa quebrada por quê?", perguntei. Pan então me disse que tinha feito um pacto com os Demônios da Garoa e que precisava discutir uma das cláusulas do contrato. "Demorô", respondi, "bora lá que os caras são meus chegados". Saímos do cemitério e fomos andando, andando, até que chegamos ao centrão, onde batemos um papito com o Supla e tivemos os celulares roubados catorze vezes. Entramos no Viaduto do Chá do Santo Daime e, entre uma miragem e outra (numa das miragens vimos um grupo de 51 Jânios Quadros e 51 Lulas correndo a São Silvestre e trançando as pernas), fomos recebidos pelo prefeito, qual-o-nome-dele-mesmo?, que nos informou que não estava mais empresariando o grupo Os Demônios da Garupa, grupo que na verdade é uma dupla de motociclistas assaltantes. Jovem Pan ficou tão desconsolado que o prefeito dessa cidadezinha provinciana que é São Paulo ainda tentou animá-lo contando uma fofoca das boas, "meeeu, você nem imagina quem eu vi ontem saindo de um motel na Ricardo Jafet". 

 

TE VEJO NA MTV Dou umas espiadas na série de encontros entre Gastão Moreira e Fábio Massari falando sobre os bons e velhos tempos. A série tem o nome "O lado B da MTV". Sei lá, bróder, com esse nome eu esperava umas fofocas altamente desabonadoras sobre fulano, sicrano ou beltrano ("aquela DJ era a maior piranha, deu pra meia MTV"), mas a coisa infelizmente não vai por aí. Gastão e Fábio, cinquentões a caminho da sexagenariedade, continuam sendo bons meninos, deslumbrados cultores das minúcias efêmeras da cultura popular (estou cada vez mais bronqueado com a palavra "pop"). Dá um certo horror constatar como tudo que se relaciona à MTV Brasil envelheceu, e envelheceu meio mal. 


COSTINHA Vejo "Carnaval barra limpa", J. B. Tanko, 1967. O filme é irregular. A trama é boboca e os números musicais, muitos e chatos, fazem a coisa se arrastar um pouco. Mas há curiosidades, como a presença de Carlos Eduardo Dolabella, Emiliano Queiroz e Ari Fontoura, esses dois últimos bastante subaproveitados no filme. Rossana Ghessa está gostosíssima como camareira do hotel onde a trama se desenrola. E Costinha está esplêndido, as usual. Sempre que começo a me sentir angustiado demais com a condição humana, kirkegaardiano demais, vejo cinco minutos de Costinha e, bah, me reconcilio totalmente com o universo.


(A propósito, J. B. Tanko, croata que se radicou no Brasil depois da Segunda Guerra, tem uma história das mais interessantes e devia ser biografado. Foi assistente de Leni Riefensthal, etc., etc.)


ITALIA PIÙ BELLA Impressionante como tem gente bonita na Itália (Rossana Ghessa, etc.). Não entendo como, com essa gente bonita toda, a taxa de natalidade italiana não vá às alturas. Como dizia o Millôr, beleza não põe mesa, mas desarruma a cama.


CAPAS DE PLAYBOY QUE NÃO EXISTIRAM, MAS QUE MERECIAM TER EXISTIDO Paola de Orleans e Bragança, em qualquer mês de 2007. Paola, por uma regra nobiliárquica a que está sujeita por ser uma Orleans e Bragança, nunca se exibiu nua ou sequer insinuou nudez quando foi modelo. E quer saber? Paola é tão gostosa que não faz diferença aparecer pelada ou não. A Playboy podia ter inovado ao colocar na capa da revista uma "coelhinha" que aparecesse rigorosamente vestida no ensaio fotográfico. Se bobear bateria recordes de venda.


PÁSSAROS A ideia pueril de que o pássaro na gaiola fica triste e que o ato de voar o deixa em êxtase. Imagino o estresse que o pássaro "livre" deve experimentar. O tempo todo tendo de ir atrás do que comer. O ato de voar (e cantar) minando suas poucas reservas calóricas. A necessidade de se abrigar, sempre de modo precário, contra o frio. A exaustão sempre à espreita. Se eu fosse um canário queria mais é ser enfiado numa bela gaiola e ser servido com bastante alpiste. 


Mudando de pato pra ganso, já notaram como o canto dos pássaros se parece com a música eletrônica? Estou falando eletrônica "Karlheinz Stockhausen". A ruidagem, a descontinuidade, etc. Edvard Grieg supostamente mimetizou o canto dos pássaros "numa bela manhã de primavera" em "Peer Gynt", mas Grieg sabia tanto de pássaros quanto o Tião Macalé sabia de cálculo integral. Já Olivier Messiaen mostrou que entendia do riscado. Ouçam sua obra "Catalogue d'oiseaux" (mas não ouçam muito, porque a experiência de estranhamento proporcionada por essa obra não demora muito a ceder a uma sensação de tédio e de mesmice). 


YOUTUBE Coisas legais no YouTube. Fragmento de meia hora de uma aula de Olavo de Carvalho intitulado "As tendências e vícios humanos". Nos últimos anos de vida Olavo perdeu o pé com as maluquices que constituem o imaginário da "nova direita", propagou asneiras a rodo ("Theodor W. Adorno compôs as músicas dos Beatles", etc.), o que acabou afastando antigos apreciadores de suas exposições eminentemente filosóficas (eu, por exemplo). Nesse trecho de aula Olavo faz uma das mais abrangentes e eruditas exposições que já vi sobre as principais correntes da psicologia no século XX.


Outra coisa bacana é o canal "Filosofia Vermelha", de Glauber Ataíde. É um prazer ouvir um marxista culto, inteligente, highbrow, nem um pouco afeito a estereótipos, um sujeito que ouve death metal em vez de Chico Buarque. (Glauber fisicamente é uma mistura do Leon Trotsky com o Ho Chi Minh. Se Michael Cimino pusesse a foto de Glauber naquele casebre onde os VCs obrigaram Robert de Niro e Christopher Walken a fazer roleta russa, lhes berrando "mao!" e lhes desferindo bofetadas na cara, ninguém ia notar qualquer diferença.)


PIADA VELHA "Fulano" é que nem papel higiênico, quando não está na merda, está no rolo.

 

(25/07/2023)

 


 

ALÔ, ALÔ, CHAMANDO, por Eduardo Haak

MADRUGADA EM SÃO PAULO, EM 1984 Ontem à noite decidi gastar uma grana (da pouca grana que ainda tenho) usando o serviço de viagem no tempo (na falta de expressão melhor) oferecido pela Time Lapse. A empresa está operando no Brasil há quatro meses, ainda sem muita divulgação. No começo fiquei com um pé atrás com essa coisa de "viagem no tempo" - muito Marty McFly pro meu gosto -, mas um amigo me convenceu de que a coisa era séria mesmo, que a viagem no tempo ("transposição espaço-temporal") de fato acontecia, que os paradoxos não sei das quantas tinham sido resolvidos com sei lá quais equações, etc., então resolvi experimentar. Comprei um pacote plus (carro, roupas e acessórios de época) e fui levado pela atendente (uma fulana meio parecida com a atriz Marisa Orth, mais ou menos simpática) a uma sala e colocado numa máquina semelhante a um equipamento de ressonância magnética. Recebi dela algumas instruções e escolhi a data, 11 de agosto de 1984, um sábado, como destino. A transposição foi rápida, coisa de menos de cinco minutos. O carro que escolhi (um Chevrolet Diplomata 1981, placa VL-0442) estava estacionado em frente ao sobrado da Time Lapse, na Rua Carla, Itaim-Bibi. Dei a partida e pus-me em movimento, creio que excitado, pensando aonde iria e o que iria fazer. 

Além de observar construções há muito tempo demolidas e comércios dos quais nem me lembrava (a óptica Lutz Ferrando, por exemplo, na Tabapuã quase esquina com a João Cachoeira), o que mais me impressionou nessa primeira volta por 1984 foi a sujeira das ruas e o caráter quase baldio do Itaim de então. Exceto dois botequins, nada mais estava aberto. Parei num dos bares e comprei um drops Dulcora. Decidi que iria ao Madame Satã, mas como ainda era muito cedo fui comer alguma coisa no Baby-O. Reconheci o chapeiro, o Sombrancelha (sic). (O Baby-O, que era a lanchonete da madrugada para quem não tinha grana para ir ao Joakin's ou ao New Dog, fechou em algum momento dos anos 1990. Hoje tem uma agência do Santander no lugar.)

Cheguei ao Madame perto de meia-noite. Apesar da aglomeração na porta, não foi difícil entrar. O que é chamado hoje de lounge estava cheio, praticamente lotado. As pessoas, em sua maioria, eram tipos comuns. Um ou outro punk, um ou outro gay estilo "bicha louca". Nenhum famoso (ou que em breve viria a ser famoso) à vista. Uma ou outra garota bonita, estilo jeunesse dorée oitentista dos Jardins. Estava tocando uma música que imediatamente reconheci, mas que demorei um pouco para lembrar do nome, "Reuters", do The Wire. As instalações do Madame, diferente de hoje, eram visivelmente precárias, conferindo ao lugar um aspecto meio de diretório acadêmico de faculdade, meio de brechó tosco. Pedi uma cerveja (Malt 90) para tentar dissipar um princípio de pânico que me bateu. 1984, o Grande Irmão está de olho é na butique dela.

Desci ao quintal, onde as pessoas sentavam-se em pilhas de pneus. Uma mulher veio puxar papo comigo. Disse que se chamava Dóris e que trabalhava numa agência de publicidade como "letra". Avaliei sua idade em 36 anos. Bonita, a Dóris. Loira, cabelos curtos, dentes meio encavalados. Estimulei-a a falar. Sua presença e sua fala me levou a um estado ciclotímico, em que se sucediam euforia (que sempre me dá quando estou conversando com uma mulher atraente) e horror (com todas as implicações daquele encontro, daquela conversa, naquela circunstância). Cogitei, mas não tive força para me afastar dali. 

Ficamos no Madame até umas três da manhã e fomos para seu apartamento. Ela morava no prédio do totem, na Rua dos Franceses. Lembro-me de um pôster do Charlie Chaplin numa das paredes da sala e de um gato siamês, vesgo e gordo, acomodado numa poltrona. Fomos para o quarto e passamos lá, talvez, duas horas. Ela pediu que eu falasse sobre mim. Pensei em não mentir, "Jânio Quadros será eleito prefeito ano que vem", "Tancredo vai ganhar, mas morrerá antes de tomar posse", "A União Soviética será dissolvida em 1991", "Em 2001 as duas torres do WTC desabarão depois de um atentado terrorista". Então me dei conta de que seria desgastante não mentir. E que não mentir, exibindo minha modestissima, mas de alguma forma impressionante "onisciência", seria incorrer numa atitude profundamente perversa e violadora. Não era Dóris, que cultivava algumas expectativas tolas, mas inofensivas, sobre si, sobre o mundo, etc., que estava demolindo o princípio da realidade, naquela madrugada de 12 de agosto de 1984, na Rua dos Franceses, Bela Vista, São Paulo. O violador disso tudo, embora ela não soubesse, era eu. Ocorreu-me que Deus, ao negar ao homem o dom profético, talvez não estivesse fazendo outra coisa senão exercer a maior de suas misericórdias. 

Saí do prédio de Dóris com o dia começando a clarear. Desci a Joaquim Eugênio de Lima até a Estados Unidos, depois virei na Nove de Julho. Procurei não observar mais nada na paisagem para não ser dominado por qualquer fascínio capaz de comprometer o que naquele instante já era uma decisão irrevogável que havia tomado. Estacionei o carro na Rua Carla, fiz o procedimento de transposição espaço-temporal e voltei ao presente. Seis horas e quarenta e quatro minutos, dia 16 de julho de 2023, um domingo.

Caminhei os poucos quarteirões que me separavam de casa não conseguindo não pensar em Dóris. Dóris, que em 1984 tinha 36 anos e que hoje, portanto, se estiver viva, tem 75. Minha decisão irrevogável foi nunca mais vê-la, nunca mais fazer qualquer tipo de "viagem no tempo" - e, sobretudo, nunca, jamais, sob hipótese nenhuma, procurar qualquer informação sobre ela no presente (o que, creio, não seria difícil, dado seu sobrenome, lituano, terminado em "icius", ser bastante incomum). Não quero saber o que a passagem de trinta e nove anos fez com Dóris. (Minto: quero saber de absolutamente tudo que aconteceu com ela.) Não quero saber se ela se lembra de um sujeito que ela conheceu no Madame Satã numa noite de 1984, um sujeito que disse a ela que se chamava Kurt Cobain. Tudo o que aconteceu nessa-naquela madrugada precisa ser esquecido. Borges disse que o sujeito que se lembrasse o tempo todo do mapa da Hungria, em todos seus detalhes, por certo acabaria louco (Jorge Luis Borges, em "Deutsches Requiem", "O Aleph"). Acontecimentos singulares demais tendem à rememoração contínua e sempre, e cada vez mais, perversamente detalhada. Menos em nome da minha própria sanidade do que da restauração da sanidade mesma, sei que começo hoje uma longa, trabalhosa (e, talvez, no final das contas, inútil) tarefa de esquecimento.

 

YOU'VE GOT ME ON MY KNEES, LAY-LA Como dizia Nelson Rodrigues, o sujeito já nasce violinista, chofer de praça, barbeiro de necrotério ou Chico Buarque de Hollanda. Se fosse vivo, diria Nelson que Leila Pereira, presidente da S. E. Palmeiras, já nasceu dirigente esportiva e banqueira (Crefisa, etc.). O que acho de Leila? Acho Leila uma delícia de mulher.


INSTAGRAM O Instagram é cheio de mulheres supostamente bonitas que por algum motivo ficam lá, exibindo suas supostas belezas. De vez em quando aparece uma realmente bonita (linda, na verdade), como uma tal de Anna Spase. Confiram o perfil da moça.


CAPAS DE PLAYBOY QUE NÃO EXISTIRAM, MAS QUE MERECIAM TER EXISTIDO Fernanda Venturini, a jogadora de vôlei, em qualquer mês de 1994.


PARQUE DO IBIRAPUERA Alguém aí se lembra do Maizena, o sujeito que alugava bicicletas no Ibirapuera nos anos 1990? Maizena era um tipo parecido com o Toni Tornado, grandalhão, e sofria de gagueira. Leio que em 2008 houve licitação para o serviço de aluguel de bicicletas no parque e Maizena, sei lá por que, não quis participar. 


PIADA VELHA Sabe por que saco de japonês se chama Vinícius? Porque vive grudado com o Toquinho.

(16/07/2023)



ALÔ, ALÔ, CHAMANDO, por Eduardo Haak

PAULISTAS, ÀS ARMAS! Ser paulistano é, de certa forma, cagar e andar pra essa cidade. Gostar daqui talvez seja mais uma questão de perceber o contraste com lugares piores do que ter uma afeição intrínseca pela, digamos, Avenida Paulista. Lembro-me de uma vez ter ido a um casamento num lugar bem trash na região metropolitana, perifa braba. Senti uma intensa euforia quando estava voltando e avistei o interminável muro do Jockey Club e os prédios bacanas da Rua Hungria. Isso estando na Marginal Pinheiros, ou seja, margeando um rio composto por merda, 50%, e dejetos químicos, outros 50%. (O rio melhorou um pouco de lá pra cá.) Sou paulistano? Sem dúvida. Nasci aqui, sou bisneto de italianos (e um pouquinho de alemães), meu sotaque talvez me denuncie. Não sei se há propriamente uma "mentalidade paulistana", um traço de personalidade, comportamental, que faça o sujeito daqui ser reconhecido de longe por um, digamos, carioca. Talvez haja. Creio que o paulistano (pelo menos o atual) seja fruto do entroncamento confuso e não raro conflituoso de gente de tudo que é canto. Talvez o paulistano seja aquele cara que, ao mesmo tempo, tenha a coisa meio arretada e maliciosa do nordestino (mesmo não tendo qualquer origem nordestina), a coisa meio nerd e certinha do oriental (mesmo não sendo "china" ou "japa") e a coisa meio pernóstica, meio arrogante do quatrocentão (designação para quem pertence a famílias paulistas tradicionais, Arruda Botelho, Ulhoa Cintra, etc.). Tudo isso numa espécie de pastiche, de paródia.  

Creio que a melhor coisa de São Paulo seja que isso aqui, definitivamente, não é uma província. Mentalidades provincianas, em geral, não colam nesse lugar. Tudo aqui é desenraizado, meio "pós-histórico". (Embora haja uns episódios históricos da pesada envolvendo São Paulo. Tenho algum fascínio pela Revolução de 1924, não tanto por sua história confusa e meio mal ajambrada, mas por suas "cenas de ação". Além de combates no perímetro urbano, em 1924 São Paulo sofreu bombardeios aéreos, além dos famigerados bombardeios terrificantes com fogo de artilharia (jogar bombas aleatoriamente contra a população civil, visando exclusivamente causar pânico). Parece que São Paulo é a única cidade no hemisfério sul em que essas coisas ocorreram. Muito louco, não?)

 

FERNANDA MONTENEGRO Ė ELEITA PARA A ACADEMIA Desde que Caetano Veloso foi visto estacionando um balão mágico na Rua Mike Biggs que o Leblon não via nada de tão espetacular. Na última última-feira, vários leblonianos avistaram a atriz Fernanda Sérvia e Montenegro, de 99 anos, entrando na academia brasileira de letras e maromba. Fernanda não só adentrou o recinto como ainda deu um tremendo show teatral, fazendo cinco séries de 60 kg no supino, com dez repetições cada. Ovacionada pelos marombeiros, que pediram bis lacta!, bis lacta!, Fernanda Oswaldo Montenegro acabou não suportando aquela agonia, aquela barra pesada toda e caiu dura, tendo sido ressuscitada com um desfibrilador cardíaco (da marca Lázaro) e com alguns goles do chá dos imortais, servido pelo acadêmico e alquimista de esteroides Paulo Cintura Coelho. A assessoria de imprensa da atriz divulgou hoje uma nota de rodapé afirmando que Fernanda já está bem, muito bem, big ben, que passará o período de recuperação em casa, período em que pretende se dedicar às letras, especificamente ao rascunho de uma lista de compras que pretende fazer no mercadinho do seu Mané da esquina, ou melhor, do seu Manuel Carlos, o rei dos mercadinhos fakes do Leblon.


CAPAS DE PLAYBOY QUE NÃO EXISTIRAM, MAS QUE MERECIAM TER EXISTIDO Fernanda Torres, em qualquer mês de 1986. Apesar de nunca ter sido propriamente um sex symbol, nas rodas de homens realmente fissurados por mulher Fernandinha sempre foi uma unanimidade. A unanimidade é que tudo nela é sexy, até suas bochechas são sexy - o que faz dela talvez um caso único, no mundo, de bochechas eróticas. (Não exatamente único, já que a Molly Ringwald também tinha/tem bochechas bem eróticas.) Gerald Thomas pegou a Fefê nos anos 1990 (Fernanda aos trinta anos), seguindo à risca a recomendação do famoso nutricionista, o doutor Honoré de Balzac, "pra comer tem hora certa". (Gerald até que tem pinta de cara fissurado por muié. Lá por aquela época, ao ouvir dizer que o estavam chamando de "diretor picareta", Gerald respondeu que na verdade ele era um "diretor pica reta". Há, há. O.k., quem comia a Fernanda Torres em 1995 pode se autodenominar assim.)


VÁ AO TEATRO, MAS NÃO ME CHAME "Dias felizes", de Samuel Beckett, em 1999, no Sesc Consolação, São Paulo, com Fernanda Montenegro e Fernando Torres. As falas de Torres não passavam de resmungos. Fernanda dizia suas falas com aquela entonação de velha bisbilhoteira de portão de vila proletária, "ô Manueeeel!". (Fernanda mandou muito bem fazendo a Zulmira de "A falecida", Nelson Rodrigues, Leon Hirszman, 1965.) Ainda há essa moda de Samuel Beckett em nossos teatros? Sempre que vejo/leio qualquer coisa desse cidadão penso, "porra, bróder, uma merda dessas até eu escrevo".


YOUTUBE Dois canais muito legais no YouTube. Um é o Madrugada RJ, de um sujeito que percorre de bicicleta, sempre de madrugada, as bocadas mais sinistras da Baixada Fluminense e vai filmando o que vê. Outro é o canal do Laércio Refundini, sobre fisiculturismo. Lalá manja muito de tudo que se relaciona com o assunto, notadamente a biomecânica dos exercícios. Sua exposição é totalmente sem cerimônia e sempre muito divertida. Figuraça, o Laércio.


PIADA VELHA Por que Sílvio Santos é o maior alquimista que existe? Porque transforma domingo em merda.

 

(11/07/2023)

 


 


NEY MATOGROSSO LIMPANDO A BUNDA CAGADA DO ZÉ CELSO - E EU COM A LIGHT?, por Eduardo Haak

José Celso Martinez Corrêa, 1937-2023, morreu queimado, "o horror, o horror". Como morreu queimada a mãe do Teixeirinha, Churrasquinho de Mãe, "o maior golpe do mundo que eu tive na minha vida", etc. Niki Lauda, de certa forma, também morreu queimado em Nürbungring, 1976, embora tenha conquistado dois campeonatos de F1 depois do acidente. Lauda nunca se recuperou de certas lesões, como as pulmonares, tendo inclusive se submetido a um transplante (de pulmões) no fim da vida. Queimadura é um troço realmente fogo, sem trocadilho nenhum.

Nunca curti muito o jeito aloprado de ser do José Celso. Uma vez o vi caminhando e falando sozinho, perto da Avenida 23 de Maio. Notei que ele realmente não fazia gênero, era doido mesmo. (Hoje em dia muita gente anda pelas ruas aparentemente falando sozinha, mas na verdade estão falando pelo celular. Não dá mais para saber quem é maluco e quem não é.)

Li muito teatro (Nelson Rodrigues é um de meus gurus, Plínio Marcos idem), mas fui a pouquíssimas encenações, vida afora. Nunca vi nenhuma que tenha me impressionado bem. Nos anos 1980 o pessoal do Planeta Diário (Hubert, etc.) lançou a campanha "Vá ao teatro, mas não me chame". (Falando ainda da mesma turma, o Agamenon Mendes Pedreira tem o tal do "cunhado esquisitão", que faz "teatro infantil", entre outras afetações, se é que vocês me entendem.) A partir de um determinado momento histórico estabeleceu-se um hiato intransponível entre teatro, arte ficcional narrativa, e teatro enquanto encenação, espetáculo, etc. Esse hiato, hoje, dá margem a um monte de confusões. Se eu digo que gosto de teatro, periga eu ser confundido com o "cunhado esquisitão" do Agamenon. Faço coro, portanto, à turma do Planeta, "vá ao teatro, mas me tire dessa".

Eu desconfio que foi o Zé Celso o autor dessa catástrofe. Essa coisa de ele se colocar como sacerdote de uma religião dionisíaca (ou algo que o valha) deitou moda entre diretores. Tem um sujeito aí que transformou seu teatro (o imóvel) numa espécie de centro de macumba e só encena "rituais". E isso não é um caso isolado. É norma, praticamente. 

Não sei dizer se José Celso era propriamente um bom ator. Tinha uma presença cênica às vezes impressionante. O guardião do limiar do purgatório que ele fez em "Encarnação do demônio", o derradeiro filme do Zé do Caixão, 2007, ficou esplêndido. Sobre o velho demente que ele fez em "Ralé", péssimo filme dirigido por Helena Ignez, 2015, até hoje não sei o que dizer. Posso dizer que me aborreci formidavelmente com o filme e seus cacoetes de "cinema marginal paulista" (Bressane, etc.), mas ri muito com a absoluta falta de limites na exploração do demencial feita pelo Zé Celso. Quando vi a cena dele cantando, tocando piano e defecando nas calças (ações simultâneas), primeiro eu achei que não tinha visto direito, depois supus que era alguma alucinação causada pelo tramadol que eu vinha tomando por causa de umas dores nevrálgicas dos infernos, então eis que o Ney Matogrosso, no papel de cuidador do velho demente, põe-se a limpar a bunda cagada do Zé Celso. Sim, era exatamente aquilo, ele estava lá, tocando o pianinho dele, e resolveu cagar nas calças. Ri como poucas vezes ri na vida. Achei a coisa puro Jackass.

(07/07/2023)