ALÔ, ALÔ, CHAMANDO, por Eduardo Haak

MADRUGADA EM SÃO PAULO, EM 1984 Ontem à noite decidi gastar uma grana (da pouca grana que ainda tenho) usando o serviço de viagem no tempo (na falta de expressão melhor) oferecido pela Time Lapse. A empresa está operando no Brasil há quatro meses, ainda sem muita divulgação. No começo fiquei com um pé atrás com essa coisa de "viagem no tempo" - muito Marty McFly pro meu gosto -, mas um amigo me convenceu de que a coisa era séria mesmo, que a viagem no tempo ("transposição espaço-temporal") de fato acontecia, que os paradoxos não sei das quantas tinham sido resolvidos com sei lá quais equações, etc., então resolvi experimentar. Comprei um pacote plus (carro, roupas e acessórios de época) e fui levado pela atendente (uma fulana meio parecida com a atriz Marisa Orth, mais ou menos simpática) a uma sala e colocado numa máquina semelhante a um equipamento de ressonância magnética. Recebi dela algumas instruções e escolhi a data, 11 de agosto de 1984, um sábado, como destino. A transposição foi rápida, coisa de menos de cinco minutos. O carro que escolhi (um Chevrolet Diplomata 1981, placa VL-0442) estava estacionado em frente ao sobrado da Time Lapse, na Rua Carla, Itaim-Bibi. Dei a partida e pus-me em movimento, creio que excitado, pensando aonde iria e o que iria fazer. 

Além de observar construções há muito tempo demolidas e comércios dos quais nem me lembrava (a óptica Lutz Ferrando, por exemplo, na Tabapuã quase esquina com a João Cachoeira), o que mais me impressionou nessa primeira volta por 1984 foi a sujeira das ruas e o caráter quase baldio do Itaim de então. Exceto dois botequins, nada mais estava aberto. Parei num dos bares e comprei um drops Dulcora. Decidi que iria ao Madame Satã, mas como ainda era muito cedo fui comer alguma coisa no Baby-O. Reconheci o chapeiro, o Sombrancelha (sic). (O Baby-O, que era a lanchonete da madrugada para quem não tinha grana para ir ao Joakin's ou ao New Dog, fechou em algum momento dos anos 1990. Hoje tem uma agência do Santander no lugar.)

Cheguei ao Madame perto de meia-noite. Apesar da aglomeração na porta, não foi difícil entrar. O que é chamado hoje de lounge estava cheio, praticamente lotado. As pessoas, em sua maioria, eram tipos comuns. Um ou outro punk, um ou outro gay estilo "bicha louca". Nenhum famoso (ou que em breve viria a ser famoso) à vista. Uma ou outra garota bonita, estilo jeunesse dorée oitentista dos Jardins. Estava tocando uma música que imediatamente reconheci, mas que demorei um pouco para lembrar do nome, "Reuters", do The Wire. As instalações do Madame, diferente de hoje, eram visivelmente precárias, conferindo ao lugar um aspecto meio de diretório acadêmico de faculdade, meio de brechó tosco. Pedi uma cerveja (Malt 90) para tentar dissipar um princípio de pânico que me bateu. 1984, o Grande Irmão está de olho é na butique dela.

Desci ao quintal, onde as pessoas sentavam-se em pilhas de pneus. Uma mulher veio puxar papo comigo. Disse que se chamava Dóris e que trabalhava numa agência de publicidade como "letra". Avaliei sua idade em 36 anos. Bonita, a Dóris. Loira, cabelos curtos, dentes meio encavalados. Estimulei-a a falar. Sua presença e sua fala me levou a um estado ciclotímico, em que se sucediam euforia (que sempre me dá quando estou conversando com uma mulher atraente) e horror (com todas as implicações daquele encontro, daquela conversa, naquela circunstância). Cogitei, mas não tive força para me afastar dali. 

Ficamos no Madame até umas três da manhã e fomos para seu apartamento. Ela morava no prédio do totem, na Rua dos Franceses. Lembro-me de um pôster do Charlie Chaplin numa das paredes da sala e de um gato siamês, vesgo e gordo, acomodado numa poltrona. Fomos para o quarto e passamos lá, talvez, duas horas. Ela pediu que eu falasse sobre mim. Pensei em não mentir, "Jânio Quadros será eleito prefeito ano que vem", "Tancredo vai ganhar, mas morrerá antes de tomar posse", "A União Soviética será dissolvida em 1991", "Em 2001 as duas torres do WTC desabarão depois de um atentado terrorista". Então me dei conta de que seria desgastante não mentir. E que não mentir, exibindo minha modestissima, mas de alguma forma impressionante "onisciência", seria incorrer numa atitude profundamente perversa e violadora. Não era Dóris, que cultivava algumas expectativas tolas, mas inofensivas, sobre si, sobre o mundo, etc., que estava demolindo o princípio da realidade, naquela madrugada de 12 de agosto de 1984, na Rua dos Franceses, Bela Vista, São Paulo. O violador disso tudo, embora ela não soubesse, era eu. Ocorreu-me que Deus, ao negar ao homem o dom profético, talvez não estivesse fazendo outra coisa senão exercer a maior de suas misericórdias. 

Saí do prédio de Dóris com o dia começando a clarear. Desci a Joaquim Eugênio de Lima até a Estados Unidos, depois virei na Nove de Julho. Procurei não observar mais nada na paisagem para não ser dominado por qualquer fascínio capaz de comprometer o que naquele instante já era uma decisão irrevogável que havia tomado. Estacionei o carro na Rua Carla, fiz o procedimento de transposição espaço-temporal e voltei ao presente. Seis horas e quarenta e quatro minutos, dia 16 de julho de 2023, um domingo.

Caminhei os poucos quarteirões que me separavam de casa não conseguindo não pensar em Dóris. Dóris, que em 1984 tinha 36 anos e que hoje, portanto, se estiver viva, tem 75. Minha decisão irrevogável foi nunca mais vê-la, nunca mais fazer qualquer tipo de "viagem no tempo" - e, sobretudo, nunca, jamais, sob hipótese nenhuma, procurar qualquer informação sobre ela no presente (o que, creio, não seria difícil, dado seu sobrenome, lituano, terminado em "icius", ser bastante incomum). Não quero saber o que a passagem de trinta e nove anos fez com Dóris. (Minto: quero saber de absolutamente tudo que aconteceu com ela.) Não quero saber se ela se lembra de um sujeito que ela conheceu no Madame Satã numa noite de 1984, um sujeito que disse a ela que se chamava Kurt Cobain. Tudo o que aconteceu nessa-naquela madrugada precisa ser esquecido. Borges disse que o sujeito que se lembrasse o tempo todo do mapa da Hungria, em todos seus detalhes, por certo acabaria louco (Jorge Luis Borges, em "Deutsches Requiem", "O Aleph"). Acontecimentos singulares demais tendem à rememoração contínua e sempre, e cada vez mais, perversamente detalhada. Menos em nome da minha própria sanidade do que da restauração da sanidade mesma, sei que começo hoje uma longa, trabalhosa (e, talvez, no final das contas, inútil) tarefa de esquecimento.

 

YOU'VE GOT ME ON MY KNEES, LAY-LA Como dizia Nelson Rodrigues, o sujeito já nasce violinista, chofer de praça, barbeiro de necrotério ou Chico Buarque de Hollanda. Se fosse vivo, diria Nelson que Leila Pereira, presidente da S. E. Palmeiras, já nasceu dirigente esportiva e banqueira (Crefisa, etc.). O que acho de Leila? Acho Leila uma delícia de mulher.


INSTAGRAM O Instagram é cheio de mulheres supostamente bonitas que por algum motivo ficam lá, exibindo suas supostas belezas. De vez em quando aparece uma realmente bonita (linda, na verdade), como uma tal de Anna Spase. Confiram o perfil da moça.


CAPAS DE PLAYBOY QUE NÃO EXISTIRAM, MAS QUE MERECIAM TER EXISTIDO Fernanda Venturini, a jogadora de vôlei, em qualquer mês de 1994.


PARQUE DO IBIRAPUERA Alguém aí se lembra do Maizena, o sujeito que alugava bicicletas no Ibirapuera nos anos 1990? Maizena era um tipo parecido com o Toni Tornado, grandalhão, e sofria de gagueira. Leio que em 2008 houve licitação para o serviço de aluguel de bicicletas no parque e Maizena, sei lá por que, não quis participar. 


PIADA VELHA Sabe por que saco de japonês se chama Vinícius? Porque vive grudado com o Toquinho.

(16/07/2023)