PER DONARE Se a segunda lei da termodinâmica, a entropia, fosse a lei absoluta que rege o universo, o universo já teria se esgotado, game over, c’est fini. Aparentemente, os declínios e as decadências são compensadas por uma antientropia – o universo é constantemente renovado por dados que não estavam dados nele de início. Algo de fora o nutre, em suma. O perdão (ao menos o perdão cristão, e talvez não só ele), se bem observado, é uma antientropia – per donare, completar o dom, completar o que foi dado. O perdão, bem mais do que uma, entre aspas, lei moral, é o elemento constitutivo fundamental de que o universo é feito. O autor desse pensamento? Olavo de Carvalho. Como um sujeito com esse altíssimo calibre intelectual foi se meter com essa escória da direita brasileira pra mim é um enigma.
DAVID NEVES Sempre me lembro de Muito prazer, encantador filme de David Neves, 1979, como um instantâneo daqueles raros e isoladíssimos momentos em que o brasileiro (ou o ser humano?) experimenta algum apogeu, apogeu esse invariavelmente seguido de uma violentíssima e inexplicável queda. “Crônica de costumes com leves tintas de drama”, pode-se definir assim o filme. Está tudo bem (maravilhosamente bem) no Rio de Janeiro de 1979. Os sócios de um escritório de arquitetura (Cecil Thiré, Otávio Augusto, Antonio Pedro) tocam suas vidas prósperas e sem afetações. São casados com mulheres bonitas e interessantes (exceto Antonio Pedro, cuja solterice é alvo daquelas especulações de sempre, etc.). Mas o tédio conjugal se insinua e os conflitos sociais rondam por ali, na zona sul carioca, ainda articulados de maneira meio frívola, brincalhona. (Vão brincando, vão.) Apesar da malemolência e da aparente estabilidade daquele mundo, é sabido que o tempo corre (v. Usain Bolt) e que o infinito arranjo de que a realidade é feita sempre está se desarranjando e se rearranjando em novas formas. E que esse processo sempre traz consequências imprevisíveis, talvez mais imprevisíveis ainda em se tratando de Brasil. “Alguma coisa vai dar muito errado no final dessas contas, mas o quê?”, é o que parecem se perguntar os dois casais, sentados lado a lado, no final do filme. “1979” se esvai, segundo a segundo, nos levando para 1980, 83, 1997, 2004, 2028, o esgarçamento, a degradação, etc. Mas nem precisamos esticar tanto a linha temporal. Em Fulaninha, filme que Neves dirigiu em 1986, meros sete anos depois de Muito prazer, a joie de vivre carioca já soa totalmente falsa, ersatz, “a festa já acabou há anos e se esqueceram de avisar os penetras mais recentes”. O que em Otávio Augusto, Cecil e Antonio Pedro era jogo de cintura, charme e saber-viver, em José de Abreu e Claudio Marzo é cafajestagem predatória.
MARROM GLACÊ Pegava muito bem o Ronaldo Resedá, dançarino, cantor, coreógrafo, etc. O clipe de Marrom glacê, 1979, foi rodado no extinto (e demolido) Buffet Torres, Rua Horácio Lafer, 430, Itaim-Bibi, São Paulo.
ANDY WAHROL Se não insistirmos em ver em Wahrol aquilo que não há nele, ele é um ilustrador divertido e até que interessante. Tudo nele é jocoso e fortemente irônico. Como realização plástica, visual, é de uma modéstia exemplar. Daqui a duzentos anos talvez alguém gargalhe olhando para a serigrafia do Elvis Aaron Presley fantasiado de cowboy e se pergunte, “quem era esse sujeito com essa cara estupidamente bovina?”.
CAPAS DA PLAYBOY QUE NÃO EXISTIRAM, MAS QUE MERECIAM TER EXISTIDO Ná Ozzetti, em julho de 1988. Quem tem alguma dúvida sobre o estrago que uma Playboy com a Ná Ozzetti teria feito nessa época, olhem a foto da moça na capa de seu primeiro álbum. (A propósito: muito legal a música A olhos nus, a versão do álbum Ná e Zé, o Zé é o José Miguel Wisnik, autor do indispensável O som e o sentido, livro de onde o Vladimir Safatle tira todas, entre aspas, suas ideias sobre música.)
16/12/2024