ALÔ, ALÔ, CHAMANDO, por Eduardo Haak

AINDA 1974-75 Faz de conta que interessa a alguém eu dizer que faz nove anos que tenho uma rotina atlética. (“Sim, interessa, manda bala.”) Oh yeah? Oh yeah. (“Oh yeah” era uma expressão que eu usava o tempo todo em meus textos jornalísticos lá por 2008, pretendendo que ela tivesse o efeito do “de leve” do Ibrahim Sued.) Após um longo e nem tão tenebroso assim período de sedentarismo, comecei a pedalar em 2016, tentando vencer os resíduos de uma síndrome do pânico (v. Pânico em SP, Os Inocentes) que me derrubou quando estava prestes a fazer quarenta e um anos (sou de 1971, façam a conta). Cheguei a pedalar 6.000 km em um ano. Afastei-me da bicicleta após sofrer um acidente potencialmente grave, em janeiro de 2022. Percebi o quanto é realmente perigoso trafegar de bicicleta por São Paulo. A corrida acabou entrando no lugar da bike (“I like Ike and bike”) e comecei também a fazer musculação, treino ABC, seis vezes por semana, ingestão de creatina, whey protein, 1,6 grama de proteína por quilo de peso corporal, etc., etc. Como corredor, tenho como padrão correr 10 km, num pace ao redor de 6,5. Quando a tendinopatia me dá um descanso, corro 15, 20 km. Em algum momento notei que os resíduos da síndrome do pânico tinham ido embora. (Os diagnósticos psiquiátricos são tão vagos quanto a descrição do mecanismo de ação dos medicamentos prescritos por psiquiatras. Não sei se o que tive foi realmente síndrome do pânico. Meus sintomas estavam mais para estresse pós-traumático. Tinha o tempo todo a sensação de que estava prestes a desmaiar ou a ter uma convulsão. Durante um período, em 2014, a sensação era como se eu estivesse com uma ressaca alcoólica pesada, o tempo todo, a coisa não passava. Tinha hiperestesia, vertigem, sensação de despersonalização. Posso dizer que vivi à base de oxalato de escitalopram, lamotrigina e benzodiazepínicos de 2012 a 2018.) (Não vou insistir nesse assuntinho pé no saco de doença. Se o assuntinho te interessa, vá ler os livros daquele sujeito, esqueci o nome dele, um deprimido profissional (v. Didi, “Hummm, ele solicita”) com cara de índio de porta de charutaria que escreveu um livro chamado Escuridão ao meio-dia ou coisa que o valha.)

 

Não gosto de correr em parques, sinto um tédio federal com traçados fixos. Sou um corredor de rua. Costumo fazer o percurso Avenida Nove de Julho, do Itaim até o Centro, aí volto pela Brigadeiro Luís Antônio. Às vezes vou até a Avenida São João, via Anhangabaú, saúdo o prédio do Banespa, viro na Líbero Badaró e volto. Às vezes entro na Rua Santo Antônio, contornando o Joelma (v. Joelma, 23º. andar, direção de Clery Cunha, 1977). Numa dessas vezes em que contornei o Joelma, lembrei-me de uma excursão que fiz como aluno do Externato Meu Xodó, Rua Cajaíba, Pompeia, 1974-75. Fomos conhecer um quartel do corpo de bombeiros. (v. Salve o Corinthians, gravação do Coro do Corpo de Bombeiros do Estado de S. Paulo). Onde, o quartel? Acho que foi no da Consolação, assim minha memória-imaginação me diz. Ali estou eu, aos quatro anos, com as pernas cobertas por uma espuma que um dos bombeiros lançou sobre nós, a gurizada. (Às vezes eu corro até a Pompeia, e entro na Rua Capital Federal, depois na Rua Paris, depois subo a escadaria mal-assombrada que vai dar na Rua Cajaíba, e observo os prédios, e chego a conclusões precisas sobre onde ficava o Externato Meu Xodó, cuja casa original, onde estudei, foi demolida no final nos anos 1970. Às vezes, voltando, o tendão de Aquiles direito já pegando fogo, paro no Cemitério do Redemptor, na Doutor Arnaldo, para encher minha garrafa no bebedouro, e descanso um pouco, e olho para o cemitério, e deduzo, por ele não ser muito grande, que não teria dificuldades para acabar encontrando o túmulo onde foram enterrados os pais e dois sobrinhos de uma amiga da minha mãe, que morreram num acidente na Piaçaguera, a estrada que vai até o Guarujá, em 1979.)

 

Passado o barato da espuma, somos colocados na caçamba de um carro de bombeiros e, oh yeah!, vamos dar umas voltas por São Paulo. A tragédia do Joelma é bem recente e todos os transeuntes olham em pânico para o carro de bombeiros soando as trombetas do apocalipse (sirene), imaginando que talvez outro prédio esteja pegando fogo (v. Como Cobrar as 13 Almas do Joelma por Alguma Graça Não Alcançada, de Jade Pynchon). Eu sinto como se todos transeuntes estivessem olhando para mim e isso me deixa muito excitado. Eu, Carlos Zeduardo, sou um eufórico carro de bombeiros, vermelho, com quatro metros de comprimento, escada Magirus-Deutz, sirene ligada, a caminho de algum feito heroico, enquanto uma multidão de Flávios Migliaccios completamente fodidos, espremidos nas calçadas, se limita a me olhar com admiração impotente. (Extra, extra! Donald Trump regrava sucesso da banda punk brasileira Olho Seco, “Você devia de proibir a migração do povão, a Praça Princesa Isabel já virou clube de camping”.) Estamos em 1975. Meu ego de quatro anos e uns quebrados está nas alturas.

 

30/01/2025

ALÔ, ALÔ, CHAMANDO, por Eduardo Haak

DEU CHINELADA NO DENTE DE CHINA Vejo-me (evoco-me) num extinto mezanino do Shopping Center Iguatemi, em 1991, degustando uma lata de Diet Coke (contém fenilalanina, etc.). Talvez haja sobre a mesa de granito branco uma sacola da extinta Livraria Siciliano, onde talvez haja um exemplar do Manual de redação e estilo do Estadão. Talvez eu esteja prestes a rir de algo que acabei de ler, uma lista de termos pejorativos vetados pelo jornal, palavras que alegadamente agridem raças, nacionalidades, orientações políticas, etc. – china (como sinônimo de chinês), vermelho (como sinônimo de comunista), carcamano (como sinônimo de italiano), etc. É bastante possível, também, que eu esteja sob efeito de uma cena que vi em Wild at heart, direção de David Lynch. Assisti ao filme por esses-aqueles dias, talvez num cinema aqui nesse shopping, o Iguatemi. A cena é aquela em que o Nicolas Cage enfia a mão no meio do traseiro de uma mulher que está subindo uma escada. Etc., etc. Todos fumam o tempo todo no filme (v. Nicotina, Os Replicantes). David Lynch morrerá nos primeiros dias de 2025, de nicotina, enfisema, DPOC e alguma praga rogada pelo doutor Drauzio Varella. A cena da escada me acompanhará vida afora.

EMPREGADA É SUGADA PELO RALO DA PIA DA COZINHA O Externato Meu Xodó (“que falta me faz um xodó”, etc.) foi a primeira instituição de ensino que frequentei, entre 1974 e 75, Rua Cajaíba, Pompeia, etc. Ainda tenho a primeira Bíblia que folheei, que era da minha avó Maria (Scarpini Haak). Embora ainda não soubesse ler, em 1974-75, sabia reconhecer analogias e semelhanças. Quando vi que a Bíblia tinha um livro chamado Êxodo, fiquei intrigado, tentando imaginar o que aquele livro caindo aos pedaços contava sobre a minha escola – Êxodo, xodo, xodó, meu xodó, Externato meu Xodó. Em 1974-75, por um breve período, minha constituição física adquiriu uma absurdidade plástica que o Salvador Dalí aprovaria. Basicamente, eu passei a enxergar através de minhas mãos, que eram vazadas por uma forma circular com, hum, cinco centímetros de diâmetro. Noutra ocasião, idem 1974-75, meu primo Boi me falou que a Dete, a empregada da minha tia, tinha sido sugada pelo ralo da pia da cozinha. Eu disse que queria ver. Subimos em duas cadeiras e nos debruçamos sobre a pia. Sim, a Dete estava lá, presa no ralo, gritando o nome da minha tia, pedindo que alguém a tirasse de lá. Passei a morrer de medo de olhar para dentro de ralos. 

OLHE FIXAMENTE PARA OS PEITOS SENSACIONAIS DA PATRICIA ARQUETTE David Lynch foi um surpreendentemente bem sucedido mestre de cerimônias de um tipo particular de show de horrores. Apesar das firulas de sofisticação, dá pra ver que Lynch tinha uma mentalidade trash. Lembro-me quando ele esteve aqui fazendo palestras sobre meditação, hipnose, etc. Só puxa-sacos ao redor dele. Um desperdício. Por que não o apresentaram ao Sady Plauth? Por que não exibiram para o Lynch o filme No calor do buraco, talvez seu filme mais radical? Certeza que o Lynch iria adorar e, se bobear, iria transformar o Sady num cineasta internacionalmente conhecido.

(E aí, seus panacas, já compraram as bandeirinhas de festa junina (v. Alfredo Volpi) verde e amarelas para torcer por Ainda estou aqui? Não quero ser estraga prazeres, mas acho que tanto o Mauricinho Lírico quando a Fernandinha Bochechas Eróticas vão levar fumo. Sentemo-nos e aguardemos.) (Aguardemos é o caralho. No dia do Oscar vou me encher de Rivotril pra não correr o risco de escutar os inteligentinhos da zona oeste (v. Luiz Felipe Pondé) soltando rojões se a Fernanda ganhar.) 

CAPAS DE PLAYBOY QUE NÃO EXISTIRAM, TALVEZ PORQUE A HUSTLER TENHA CHEGADO ANTES A fulana que tem as nádegas apalpadas pelo Nicolas Cage em Wild at heart. A mulher é linda e não consegui descobrir o nome dela. Acho que não está creditada no elenco. De qualquer forma passados trinta e quatro anos hoje ela deve ser uma velhusca toda estropiada, cheia de botox, etc., etc.

28/01/2025


ALÔ, ALÔ, CHAMANDO, por Eduardo Haak

MOB RULES “Pó e putaria, coisas que dão muito dinheiro nesse país esfuziante”, assim diz José Zakkai, vulgo Nariz de Ferro, futuro CEO do Escritório Central, holding congregadora de um blend de negócios lícitos (de fachada) e ilícitos (pó, putaria, etc.), isso tudo no romance A grande arte, Rubem Fonseca, 1983. Walter Salles fez um filme medíocre, homônimo, baseado no livro. O filme é de 1991. Nele, o Mauricinho Lírico, herdeiro do banco que nem parece banco (v. Marcelo Camisola), atenua o “tá tudo dominado”, os negócios dos antigos bacanas do eixo Rio traço São Paulo, então descapitalizados e decadentes, sendo irrigados por “pó e putaria”. Transforma Peter Mandrake, Édipo trágico de outra maneira, porque no livro ele revela que certas esfinges são mesmo indecifráveis, num fotógrafo (clichê ultrabatido) gringo deslumbrado com o suposto exotismo do Rio, fotógrafo esse interpretado por Peter Coyote. (Coyote está a cara do Iggy Pop no filme. Giulia Gam, hum, digamos que está até que gostosinha desfilando com uma minissaia preta de couro, apesar da cara de nhoque ao sugo.) Em relativa defesa de Walter Salles posso dizer que ele não foi o único que leu muito mal o livro do Rubem Fonseca. A quem tivesse olhos para ver, todo nosso futuro já estava ali, nesse livro, numa síntese imaginativa soberba. Seria tão difícil assim ler A grande arte, olhar o mundo ao redor e constatar que um universo todo havia sido descortinado? Bem, talvez fosse impossível. Lembro-me bem do que era o imaginário, as crenças e as superstições do brasileiro médio (ou mesmo do supostamente superior) de 1983. Era uma mistura de espiritismo (“Leia Kardec”), Programa Flávio Cavalcanti e algum disco de piadas do Ari Toledo. (Há outras possibilidades de mistura, igualmente péssimas.) A divisa do Brasil, em vez de ordem e progresso, deveria ser mob rules ou o ruim predomina ou tudo que é bom estraga e tudo que é podre prospera nessa merda de país. (Olavo de Carvalho diz uma imensa bobagem quando afirma que os últimos livros de literatura ficcional que captaram de modo abrangente o que era o Brasil foram Quarup, de Antônio Callado, e Pessach: a travessia, de Carlos Heitor Cony. Comparados ao livro de Rubem Fonseca, esses não passam de dois livrecos provincianos e ingênuos.)

BOTA UM PONTA, TELÊ Admito que, aos onze anos, fui um espectador apaixonado da Copa de 82. Hoje, revendo gols no YouTube, até acho os lances bonitos (o gol do Sócrates contra a Itália), mas o tom histérico da narração do Luciano do Valle, aquela gritaria toda, a musiquinha ufanista herdada da Copa de 70, noventa milhões em ações ao portador, etc., me dão uma sensação de pesadelo revivido. (Em episódios recentes, Arthur Moreira Lima foi homenageado na sede do Fluminense F. C. e Marcos Valle fez um vídeo cantando e tocando com a camisa do Botafogo F. R. Em algum momento o futebol deixou de ser o ópio do povo e vestir a camisa, literal e metaforicamente, se tornou quase que uma obrigação, um indicador de sensibilidade social, Lula corintiano, etc. A meu favor posso dizer que faz mais de quarenta anos que torço para que o futebol acabe.)

CAPAS DA PLAYBOY QUE NÃO EXISTIRAM, MAS QUE DEVERIAM TER EXISTIDO Márcia Bulcão, em dezembro de 1984. Márcia era uma das vocalistas da Blitz, ao lado da Fernanda Abreu. As duas eram lindas, mas Márcia fazia bem mais o meu tipo. Certamente elas receberam na época propostas para serem fotografadas, e se não rolou deve ter sido por alguma cláusula contratual da Blitz. (A propósito, estava me lembrando outro dia que o Evandro Mesquita foi garoto propaganda dos cigarros L&M nos anos 1990, “te encontro na sessenta e seis”. E que o Ricardo Petraglia, Dick Petra, fez propaganda eleitoral para o Paulo Maluf, também nos 1990s.)

11/01/2025