ALÔ, ALÔ, CHAMANDO, por Eduardo Haak

ASSALTOS LTDA. Meu pai estaciona o Ford Maverick 1974 cor de abóbora com motor seis cilindros numa rua feia (Rua Vespasiano?) repleta de árvores doentes e diz pra gente que volta logo. Ele entra numa casa que tem uma placa com alguma coisa escrita. Como ainda não fui alfabetizado, não sei o que está escrito na placa. (v. “Sorriso do cachorro tá no rabo”, Walter Franco.) Meu pai começa a demorar. A demorar. A demorar muito. Começo a me sentir angustiado. Faço em voz alta a pergunta, será que ele foi assaltado? Meu primo John Entwistle/Ox, que aos quatro anos já tem a malícia e o sadismo altamente desenvolvidos, responde que sim, que meu pai deve ter sido assaltado, por isso está demorando. Eu entro em desespero e começo a chorar. Meu irmão André também começa a chorar. Ox, tentando conter a gargalhada, diz que na placa da casa onde meu pai entrou está escrito Assaltos. Sim, meu pai entrou na tal casa, dirigiu-se à recepção e disse, bom-dia, eu gostaria de ser assaltado. Etc., etc.

FCK CNV A praça ao lado da Assembleia Legislativa, ALESP, está completamente ocupada por banheiros químicos. Olhando assim parece um pouco aquelas concepções visuais surreais do Storm Thorgerson. Uma coisa meio psicodélica, meio trash, efeito de LSD-25 com Corote, Peter Fonda dirigido pelo Sady Baby, gravado em VHS. A Assembleia depois podia votar a mudança do nome da praça para Praça dos Foliões Cagões e Mijões. A Pedro Álvares Cabral podia mudar para Avenida Amônia (por causa da urina, etc.). Fuck carnaval. 

REPÚBLICA ARGENTINA Luis Alberto Spinetta nada tem a ver com os estereótipos da cultura hispanoamericana, aquela coisa latinos de sangue caliente, cantoras no cio, Shakira fixada na fase oral, etc. (v. “Se bunda falasse, falaria espanhol.”) (E se minhoca falasse, falaria chinês.) Tampouco Spinetta tem a ver com o estereótipo do argentino, tango, alfajor, etc. (Sua única música em que aparece um bandoneon é Las golondrinas de la Plaza de Mayo.) Rock’n’roll? Sim, mas o vago e frágil conceito de rock argentino é incapaz de esclarecê-lo (Fito Paez e Charly Garcia não lhe chegam aos pés). Ela, a música de Spinetta, é prima em segundo grau (às vezes em primeiro) do Clube da Esquina. E é esplêndida, a música de Spinetta.

A GRANDE ARTE Encontro no meio de A grande arte, Rubem Fonseca, um papel já meio amarelado com uma análise que fiz da harmonia de Diamond dust (Bernie Holland, Jeff Beck, Blow by blow, 1975). A música muda de tom (de modo, na verdade, pois se trata de uma música polimodal) dezesseis vezes. A quem interessar possa: D dórico, D menor melódico, F dórico, F menor melódico, A# eólio, F# lídio, D# dórico, G# dórico, E lídio, B lídio, A# eólio, F# lídio, F eólio, C eólio, A# mixolídio, A eólio.  

ICI Descubro com alguns anos de atraso que a Imperial Chemical Industries não existe mais. Aquela foto espantosa usada na capa do disco do Alan Parsons, da Ammonia Avenue, uma via de quilômetros e quilômetros só com tubulações gigantes para o transporte de amônia, numa fábrica da ICI, explica um certo gosto pelo niilismo e pelo humor demolidor sem limites das pessoas que nasceram por volta de 1971, “logo vamos todos para o brejo, mas pensando bem a coisa até que é engraçada”. (v. “Union Carbide dá amostra grátis pra dois mil na Índia.”)

ELEIÇÕES 82 Um repórter diz, minha pergunta é para o candidato Franco Monturo. (Monturo, monte de lixo.) O candidato corrige, meu nome não é Monturo, é Montoro. Etc., etc. 

CAPAS DE PLAYBOY QUE NÃO EXISTIRAM PORQUE ESTAMOS EM 2025 E A REVISTA DO HUGH HEFNER FOI PARA O BREJO Uma atriz espanhola chamada Marta Belmonte. Tremendamente bonita. Não sei se é boa atriz. Parece que fez um papel de sucesso, alguma coisa de lesbianismo, lesbianismo kitsch netflix. 

28/02/2025


ALÔ, ALÔ, CHAMANDO, por Eduardo Haak

PASSEIO NOTURNO Saio do Madame (ex-Satã), são quase três da manhã. Maga Patalógica olha para a tela do telefone e acompanha o percurso do Uber, Magy Imoberdorf pergunta se não me importo se ela não me der carona hoje. Digo que não, não me importo, mas que preciso encontrar um ponto de táxi, ou ir para um lugar onde haja probabilidade de eu pegar um táxi que esteja circulando (v. “Livre como um táxi”, Millôr Fernandes). Magy atravessa a rua, agora há na Rua Fortaleza dois food trucks. O Uber de Maga Patalógica chega e nos despedimos, Magy passa de carro e não olha na minha direção. Afasto-me do Madame e sigo a Rua Fortaleza até a Rui Barbosa e espero um pouco em frente a um posto de gasolina abandonado que agora serve de lava rápido e estacionamento e nenhum táxi surge. Vou andando até a Conselheiro Carrão e sigo por ela e chego à Rua dos Franceses e  vou subindo, e passo em frente a um hospital, e ouço uma espécie de rumor formado de resíduos sonoros distantes, e passo em frente aos prédios do totem, e subo a Joaquim Eugênio de Lima decidindo se vou entrar na Cincinato Braga ou atravessar a Paulista e seguir pela Alameda Santos. Escolho a Cincinato pensando que talvez o sujeito que vi em frente ao pronto-socorro ali na Rua dos Franceses fosse uma assombração, alguém que morreu em 1999 e que às vezes vem passear na Bela Vista, especialmente de madrugada. Passo em frente a padaria com clima de Nelson Rodrigues aonde fui algumas vezes com o Carlos e a Andrea e cogito fazer o percurso todo até minha casa a pé. (Cogito fazer um treino longo de corrida algum dia desses, de madrugada, talvez indo até o Centro.) (V. Depois que todo mundo dormiu, Eduardo Piochi, 1982.) Finalmente vejo um táxi em frente ao Hospital Santa Catarina e vou ate lá e pergunto ao taxista se ele tem troco para uma nota de cinquenta e ele diz que não, então ofereço vinte reais pelo percurso até minha casa e ele aceita e eu subo no táxi. 

MIRCEA ELIADE fala bastante sobre mitos não propriamente de origem, mas de inícios. Grandes inícios. Nossos grandes inícios. Nossos primeiros sonhos impressionantes. Nossas primeiras viagens. Primeiras percepções e intelecções. O cheiro de cigarro e bala Frumelo (framboesa, Lacta) do apartamento da minha avó Ida. (Minha avó fumava Minister e morava na Rua Iguatemi, 335.) 

(Acho que o fantasma na Bela Vista era o Goulart de Andrade.) 

LUÍS CARLOS ALBORGHETTI Vejo um vídeo chamado Alborghetti melhor sequência. O vídeo é de 1992. Alborghetti acende uma vela e fica rogando para que um bandido que está hospitalizado (tiro, etc.) morra. “Vai morrer ou não vai? Vaaai...” A imagem da vela se mescla à imagem de um demônio, com chifres e cara preta. Noutra parte, Alborghetti diz que PC Farias e os “meninos do Comandaço Vermelho” deviam ser fuzilados em praça pública. Depois festa, foguete, chope pra todo mundo, uma carne legal, costelaço, fica todo mundo lá, tomando chope e vendo o sangue (do PC, etc.) escorrer.

TELESP INFORMA Chama-se Rosa Baroli, a dona da voz do serviço de hora certa da Telesp, 1977-1998.

CAPAS DE PLAYBOY QUE NÃO EXISTIRAM, MAS QUE DEVERIAM TER EXISTIDO Hoje menciono duas: Serena Ucelli, em março de 1985 (“Intestino volta a funcionar: Tancredo já está cagando e andando”) e Emília Caldas, junho de 1987. Serena era proprietária e garota-propaganda do jornal de classificados Primeiramão. Aparecia na TV, toda linda, falando com um delicioso sotaque estrangeiro, que não parecia propriamente italiano. Etc., etc. Emília Caldas era uma das beldades do Afrodite se Quiser. Antes, havia feito uma interessante parceria com seu então marido, Robertinho de Recife (o álbum, Robertinho de Recife e Emilinha, 1982, que botou nas paradas Dominó, dominó, é uma obra notável e esquecida da música pop-popular brasileira). Emília poderia ser a irmã do meio de Vera Mossa e Nicole Puzzi. Como dizia Nelson Rodrigues, a mulher bonita, por si só, já é uma forma de epifania.

Etc., etc.

(Votei no Ricardo Nunes porque achei que ele ia acabar com essa coisa de blocos de rua em São Paulo, etc.)

(V. NEIDE TAUBATÉ, “NÃO É MESMO?) “O povo cerca a gente pensando que somos bi****, nós estrilamos com voz fina, quando eles quiserem tascar, a gente, e mais vocês, se for preciso, põe a maldade pra jambrar e fazemos um carnaval de porrada pra todo lado. Vamos acabar com tudo que é bloco de cr*****, no pau, mesmo, pra valer. Você topa?”, trecho de Fevereiro ou março, Rubem Fonseca.

19/02/2025


ALÔ, ALÔ, CHAMANDO, por Eduardo Haak

9 DE FEVEREIRO DE 1985 É meu aniversário de catorze anos. Estou usando temporariamente o quarto que é da minha avó Maria, que está em Santos. Trouxe para cá minha guitarra, discos e aparelho de som. Vejo em sequência, na TV Cultura, Fábrica do Som e Som Pop (v. Tadeu Jungle e Paulinho Heavy). Recebo três amigos – o Tom, que me dá de presente o Born again, do Black Sabbath, o Alexandre e o Boi, que é meu primo. Alexandre e Boi dizem para o Tom que ele se parece com o baterista dos Titãs, o André Jung. Tia Gylka e a mãe do Alexandre, a Cláudia, ficam na sala conversando com minha mãe. Tia Gylka fuma Galaxy Slims e Cláudia fuma Hollywood. Sábado, 9 de fevereiro de 1985. É a primeira vez que não faço festa de aniversário desde que comecei a fazer festas de aniversário.

9 DE FEVEREIRO DE 1984 Estou no salão de festas do prédio. A festa é para comemorar meus treze anos. Uns amigos acabam de chegar – Romano, Terezinha, Cristiane e Evandro. (Romano fuma Pall Mall, Astolfo fuma Arizona, vó Ida fuma Charm, etc.) Evandro me estende uma embalagem da Sandiz. É um disco, o Undercover, dos Rolling Stones. A Tereza, mãe do Elton, vê a imagem da contracapa, uma mulher nua, fotografada de costas, com o dorso inclinado, e faz um comentário engraçado, com alto teor sexual.   

9 DE FEVEREIRO DE 1983 É a primeira vez que comemoro meu aniversário no apartamento, não no salão do prédio. Eu e uns amigos estamos no quarto fazendo gravações supostamente engraçadas. O Eduardo Gordinho (v. Yoplait) canta o que ele diz ser Cruel, cruel, esquizofrenético blues, da Blitz. Não sei como ele teve acesso a esse material, também não posso ter certeza se isso que ele está cantando é mesmo a música censurada da Blitz. Na sala, as pessoas estão falando sobre a Karen Carpenter, que morreu hoje, de anorexia.

9 DE FEVEREIRO DE 1986 Num lugar chamado Mil Milhas, em Interlagos, à beira da represa. A toalha da mesa está suja, o que gera constrangimento e mal-estar. (V. A toalha da mesa estar suja como metáfora, etc.) 

9 DE FEVEREIRO DE 1987 Estou fazendo uns sons no teclado Korg Poly 800 do Maurício Tartá. Frederico me deu de presente o Magical mystery tour, dos Beatles. Coloco I am the walrus e digo, é essa faixa, ouça. Frederico ouve e diz que não achou nada demais. (À tarde fui trocar um vale-disco numa Hi-Fi do Iguatemi. Peguei o Drama, do Yes.)

9 DE FEVEREIRO DE 1992 Espero mais de duas horas um amigo que disse que viria em casa. Como ele não aparece, vou ao aniversário do meu primo Christian (fazemos aniversário no mesmo dia, etc.). Estou usando uma camiseta polo verde garrafa e uma calça de sarja cinza, meio que imitando o que suponho ser o jeito de se vestir do Stewart Copeland, o baterista do The Police. 

9 DE FEVEREIRO DE 1996 Num bar na Rua Tabapuã chamado Anjo Lelahel, evento feito de improviso, convites enviados de última hora. Apesar disso, um monte de gente aparece.

9 DE FEVEREIRO DE 2018 No Madame Satã, na varandinha onde projetam filmes: eu, Roberto Bicelli, Miguel de Almeida, Luciene Lamano, Magali Bragado e um cara que parece o tio Chico da Família Adams, que não sei quem é. 

9 DE FEVEREIRO DE 1982 O síndico do prédio, seu Martinelli, entra no salão dando ordens, gritando, dizendo que está na hora de encerrar a festa (v. Por que coronéis reformados do exército tendem a virar síndicos em prédios na Tijuca?). A família toda (Mirandas, Cerveiras, Pasquinellis, Haaks, etc.) vai pra cima do sujeito. Até eu, que estou completando onze anos, participo do quase linchamento. Uma grande, uma gigante catarse de palavrões, termos chulos, copinhos de plástico arremessados. Meu primo Duto, com a palma da mão voltada contra o rosto acuado do síndico, fica repetindo o xingamento seu bosta. O ano de 1982 é um ano muscle car, Opala 4x100, míssil antinavio Exocet, chiclete Bazooka argentino, chão quadriculado de Congonhas, Mário Fofoca.

Etc., etc.

09/02/2025