UM TREM PARA AS ESTRELAS, DE CARLOS DIEGUES, por Eduardo Haak

Ver Um trem para as estrelas, Carlos Diegues, 1987, passados trinta e quatro anos dá aquela espécie de prazer que experimentamos ao contemplarmos, hoje, uma antiga catástrofe da qual, por alguma misteriosa razão, escapamos ilesos. Sim, como pudemos sobreviver ao final dos anos 1980 é uma questão em aberto. A década foi como uma daquelas festas que começam muito bem (1982, 83, no máximo 1984), mas que lá pelas tantas desandam – uma festa para a qual todos julgávamos possuir a senha de acesso, “hoje a festa é sua, hoje a festa é nossa, é de quem quiser, quem vier”, como dizia aquela musiquinha de final de ano da Globo; contudo, não tardamos a descobrir, nós, os supostos possuidores da suposta senha de acesso, que aquela coisa de “quem quiser, quem vier” não passava de uma filosofia inclusiva de araque. A saber: Scarlet Moon de Chevalier deixou de frequentar o píer de Ipanema quando este foi tomado pelo “craudinor” (crowd, multidão). O Asdrúbal Trouxe o Trombone implodiu quando, num fenômeno hiperinflacionário típico daquele tempo, já andava contabilizando perto de trezentos “membros”. A produção brasileira de instrumentos musicais viveu um de seus maiores booms logo após o Rock in Rio, 1985, não deixando desprovidos dos suprimentos necessários os cinquenta mil novos aspirantes a bateristas, baixistas e guitarristas que surgiam por mês (ou por semana) no período. Todo mundo querendo ser artista, levar a vida na flauta, etc. E por aí vai. Contrariando Carlos Marx (“tradução de Nelson Rodrigues”), a(s) história(s) não necessariamente se repete(m) como farsa. Qualquer pessoa que já viveu algumas décadas sabe disso perfeitamente bem.

Apesar de eu apontar nessa abertura que Um trem para as estrelas provavelmente apresenta mais interesse, visto em 2021, para coroas saudosistas a fim de curtir uma onda nostálgica, dado que o tempo que decorreu desde sua realização o transformou num notável retrato de época, não deixo de acreditar que o filme possa interessar aos mais jovens, aos que não têm referências pessoais daquele tempo. Nem tudo no filme é datado – e nem tudo que é datado (nesse ou em qualquer outro filme) é necessariamente perecível. Desde que o mundo é mundo o permanente e o transitório vivem numa tensão dialética irresolvida (e irresolvível). Heráclito e Parmênides gastaram muita saliva nessa discussão sem sair do impasse-empate. (A coisa é mesmo uma espécie de Fla-Flu desde a Grécia Antiga, Clube de Regatas Parmênides versus Heráclito Football Club, zero a zero, dois mil e quatrocentos anos do segundo tempo.) No mais, não poucas pessoas confessam sentir saudade de épocas que elas não viveram. O fetichismo por objetos vintage é um fato mais do que observado. E por trás desse fetichismo sem dúvida está nosso pacto civilizacional, o acordo entre os mortos (passado), os vivos (presente) e os que ainda vão nascer (futuro). Só mesmo uma pessoa dotada de um grau muito patológico de provincianismo temporal seria incapaz de compreender um mundo desprovido de WhatsApp e com carros funcionando com um treco chamado carburador.

Pois bem. Estamos no Rio de Janeiro, segunda metade dos anos 1980. “Rio de Janeiro” pode induzir o leitor ao equívoco de pensar imediatamente em joie de vivre, praia, sol. Não, nada disso. Estamos num Rio noir, quase blade-runneriano. Numa feliz e notável escolha de direção, Diegues não mostra nenhuma vez no filme qualquer paisagem clichê da Cidade Maravilhosa. Helicópteros sobrevoam cemitérios de carros, aglomerados de prédios comerciais recortam a linha do horizonte – a paisagem parece um pouco a de Los Angeles Downtown vista a distância. Estamos, em suma, num Rio sem praia, sem Garota de Ipanema, sem o consolo e as compensações do belo. Vina, Vinícius, Guilherme Fontes, é um jovem saxofonista que vive entre uma gig e outra (ora acompanha Cazuza, ora Fausto Fawcett, etc.). Tudo o que herdou do pai, já morto, foi um sax tenor e uma pilha de estropiados discos de jazz. Mal vê a mãe, Camila, Betty Faria, que é dançarina do show “As Mimosas Eróticas”. Mora com um tio, técnico de rádio e TV (“Instituto Universal Brasileiro”), num mostrengo modernista plantado no subúrbio, Guadalupe, espécie de versão carioca do Gropiusstadt berlinense, lar de Christiane F., etc. Namora Nicinha, Eunice, Ana Beatriz Wiltgen, garota bonitinha com ar inocente que trabalha como vendedora numa loja de surf. De um dia para o outro Nicinha some, não aparece mais no emprego, etc. Vina vai à polícia e narra o ocorrido. O delegado Freitas, Milton Gonçalves, se interessa bastante pela história de Vina, o Orfeu do sax, e não dá mais sossego para ele.

A trama de Um trem para as estrelas alude remotamente ao mito de Orfeu e Eurídice, o jovem tocador de lira que vai ao mundo dos mortos resgatar de lá sua amada, etc. Remotamente, sim, porque Vina praticamente nada tem de Orfeu. Interessa-se por Nicinha apenas como espectadora de seus arroubos narcisistas. Nicinha, se é que já foi apaixonada por Vina, no momento não é mais. Vina nem percebe, hipnotizado pela própria discurseira solipsista e pelo som do próprio sax. Daí que a busca que ele empreende a partir daí parecer meio duvidosa. Vina ora parece aflito, ora entediado ao tentar esclarecer o sumiço da moça. No fundo preferiria deixar o assunto pra lá, mas o delegado, que intimamente aposta na não inocência de Vina no caso, está determinado a tirar a história a limpo, “Você não deve nada, não, né, garoto? Pensa bem. Todo mundo tem um esqueleto guardado no armário”.

No périplo a que se lança meio a contragosto Vinícius-Vina se deparará com uma sequência de impressionantes criaturas em seus instantes de minúsculas (ou imensas, impossível decidir) fulgurações, todos habitantes de um universo que aparentemente deixou de ter qualquer integridade e  inteligibilidade: Zé Trindade, pai de Nicinha, que passa os dias sentado num dos elevadores do Edifício Paulo de Frontin, bebendo suas cervejas e fazendo suas cantorias (a cena parece cômica, uma típica situação de chanchada, mas no contexto expressa apenas desespero e horror); Miriam Pires, mãe de Nicinha, uma velha histérica viciada em TV cuja presença cênica, soberba e horripilante, evoca a aparição da mãe-caveira de Norman Bates em Psycho, Alfred Hitchcock, 1960; José Wilker, um jornalista bêbado que, em avançado estado de embriaguez, fica pedindo insistentemente ao “maestro” que toque Blue moon, isso durante um show do Fausto Fawcett e os Robôs Efêmeros, num bar todo decorado com néon e mobiliário em estilo Memphis (Wilker, claro, é ignorado, e Fausto prossegue narrando a história da sereia silicone copacabanense que vive despejando purpurina nas macumbas mofadas); Daniel Filho, também jornalista, jornalismo popular, id est, marrom, sensacionalista, fazendo praticamente o mesmo papel que fez em Beijo no asfalto, Bruno Barreto, 1981, o de Amado Ribeiro, o jornalista mais cafajeste da face da Terra; Betty Prado, uma beldade meio maluca que dirige um Ford Escort XR-3 conversível e que curte levar umas bofetadas durante o sexo; um drogado morador de rua que explica para Vina que antigamente a Terra vivia em eterna primavera, mas aí um cometa passou muito perto daqui, o que alterou o eixo de rotação do planeta, disso tudo resultando o término de nosso estado paradisíaco.

Um desses personagens fulgurantes é olhado mais de perto e por um período de tempo mais estendido durante o filme. Trata-se de Eduardo, Dream, Taumaturgo Ferreira, vizinho e amigo de Vina, aspirante a playboy nova-iorquino – mas, enquanto Nova York não chega, ele vai tocando a vida como feirante e tutor da mãe cega e demente (a velhinha vibra com a promessa do filho de que ele está juntando dinheiro para comprar uma televisão em cores para ela; Jorge Luís Borges falava da ironia de Deus, que havia lhe dado, ao mesmo tempo, uma biblioteca com cem mil volumes e a “noite”, a cegueira). Dream é um tipo gente boa, sempre eufórico (“extrovertido ululante”) em suas expressões de afeto, um garotão cheio de ginga, bróder pra lá, bróder pra cá, alguém que imediatamente nos cativa e por quem passamos a torcer, embora saibamos que o tipo não é lá muito confiável e que aquela ginga toda mal oculta o senso que ele tem da própria impotência existencial. Com aquela ideia fixa e delirante de Nova York, Dream se deixa levar pela conversa de um amigo barra pesada, Jacaré, Marcos Palmeira, a quem resolve acompanhar num assalto (Dream acaba arrstandoVina para a empreitada, embora este hesite consideravelmente em participar dela – acaba indo mais para tentar proteger o amigo, de quem conhece as vulnerabilidades todas). As coisas, é lógico, dão muito errado no assalto, Dream é baleado, passa uma noite debaixo de uma ponte em companhia de Vina, sem poder buscar assistência médica, dada a circunstância em que levou o tiro. Os dois acabam tomando o metrô, Dream já à beira da morte, “Vina, fala comigo, diz qualquer besteira”, ele diz, amedrontado, sentindo a vida se esvair de seu estropiado corpo (“Stop, David, I’m afraid, my mind is going, I can feel it”). A interpretação de Taumaturgo é bastante tocante, lamentamos sua morte como lamentamos a morte de Ratso Rizzo, Dustin Hoffman, em Midnight cowboy, John Schlesinger, 1969. (Como lamentamos, igualmente, a “morte” do HAL 9000 em 2001, Stanley Kubrick, 1968.) Ratso e Dream de fato se parecem, ambos adoráveis pequenos vigaristas com ambições semelhantes (Ratso, nova-iorquino, sonha com uma utópica e solar Flórida, Dream, carioca, sonha com uma utópica e feérica Nova York), ambos comovedoramente frágeis. (Lembro-me de ter visto na ocasião do lançamento do filme, 1988, uma entrevista de Taumaturgo para a jornalista Paula Dip. Taumaturgo disse que, para fazer a cena da morte de Dream, concentrou-se nos sentimentos de pesar que então experimentava em relação a um amigo que havia falecido recentemente, que a energia canalizada por essa focagem acabou lhe fazendo muito mal, etc.)

O caso do desaparecimento de Nicinha acaba se resolvendo sem a interferência de Vina – o delegado Freitas descobriu que a menina com cara de inocente vinha traficando drogas e a prendeu em flagrante. Concede que ela veja Vina tocando (com Cazuza) antes de levá-la para o presídio, já sabendo que “Orfeu” e “Eurídice” irão fugir. Sorri quando os dois elementos de fato empreendem a fuga. Freitas, deus do submundo (Hades), por certo sabe mais do que é dado aos comuns mortais saberem, daí que deve ter tido suas razões para agir como agiu. Atitude benevolente e paternal? Desprezo por contraventores tão chinfrins como aqueles? Ou ele simplesmente deu corda para que aqueles dois acabassem, de alguma maneira, se enforcando um pouco mais adiante? Quem sabe? Freitas deve saber. Nós, contudo, meio que boiamos com sua decisão.

Interessante que Vina, Guilherme Fontes, explicitamente protagonize o filme – tenha mais “posse de bola” –, mas que os coadjuvantes constantemente roubem seu protagonismo. Ao menos no quesito peso, “força gravitacional”, empuxo versus arrasto aerodinâmico. Milton Gonçalves particularmente o esmaga quando contracenam, como na aterrorizante cena do banheiro da delegacia, quando o pobre Vina tenta esconder debaixo do pé a ponta de um cigarro de maconha que caiu de sua carteira. Outro aspecto curioso do personagem Vina é sua considerável inibição sexual – no fundo ele não está muito aí para a namorada, perde o rebolado quando Betty Prado pede algo mais “vigoroso”, demostra um considerável conflito edipiano ao procurar, todo perturbado, não olhar para a mãe nos trajes mínimos com que ela se exibe no show “As Mimosas Eróticas”. Há, sem dúvida, um flanco inexplorado aí. Talvez se empreendêssemos a devida exploração acabaríamos encontrando, no fundo dessa caverna, o Nelson Rodrigues trepado num caixote de querosene jacaré pontificando que o brasileiro é um subdesenvolvido – não só como também, um subdesenvolvido sexual.

Acrescentando algo sobre Freitas (sem dúvida o personagem mais consistente e interessante da história), o esmagamento sistemático que impõe ao débil Vina pouco tem a ver como a diferença de tônus basal que há entre ambos. A verdadeira diferença entre um e outro reside no fato de que Freitas, nesse mundinho de insustentáveis levezas do ser do final dos anos 1980, ousa manter os pés firmemente plantados na realidade. Ele sabe que ser é ato, não uma substância estática dada a ser contemplada, que só conhecemos as coisas (e a nós mesmos, na medida do possível) quando não nos negamos ao papel de agentes no mundo (enquanto Vina insiste no erro de Narciso, que é o de congelar-se numa autocontemplação hipnótica e esterilizante). Freitas insiste em buscar desvendar as coisas que de fato ocorreram, pouco importando que o mundo tenha virado as costas à ideia mesma de verdade objetiva. E, de certa forma, tenta trazer o hesitante e assustadiço Vina para sua causa –sim, cooptar aquele garotão que sequer sabe lidar com mulher, “Esse negócio de paixão pra mim é coisa de veado, homem que é homem sente é tesão”, para que ele adira à “vida como ela é” talvez seja uma das ambições didáticas de Freitas. “Antigamente a gente tinha autoridade, garoto”, por fim ele diz, numa fala que pode parecer a mera lamentação de um membro do aparato de segurança pública que perdeu muitas de suas prerrogativas (com a redemocratização, etc.), mas que em sua camada verdadeiramente substancial é a fala cheia de sabedoria de alguém que sabe que o princípio da realidade não vai poder ser negligenciado por muito mais tempo, “Qualquer hora vão precisar da gente de novo”, profetiza ele. 


Sobreviver a uma catástrofe – sobreviver a um período de tempo especialmente ruim, por exemplo – pode nos dar uma sensação ilusória de que “o pior já passou”. Lázaro escapou da primeira morte, todos sabemos, mas certamente não escapou da segunda.(Períodos de tempo especialmente bons podem ser igualmente catastróficos; sempre ouvimos falar da sobrevida apática vivenciada por pessoas que tiveram algum grande apogeu logo no início da vida, apogeu esse que passou, aí a pessoa se arrastou por trinta, quarenta anos de um insopitável anticlímax.) Vinícius e Nicinha escaparam daquele aperto específico que vivenciaram, delegado Freitas, etc., assim como, muito provavelmente, acabaram escapando da realidade compressiva e deprimente do Brasil do final dos anos 1980, e assim foram indo, tocando o barco, anos 1990, anos 2000, 2010, 2020. Interessante imaginar o que a vida, passadas mais de três décadas, pode ter feito aos personagens de Um trem para as estrelas. Imagino Vina hoje: cinquenta e tantos anos, radicado em São Paulo já há tempo o bastante para ter incluído em seu vocabulário expressões como o famigerado “ô meu”; divorciado, três filhos, representante comercial (vende produtos para bebês – fraldas, chupetas, mamadeiras, etc.); não toca mais sax; não conseguiu parar com a maconha, apesar de algumas tentativas, o que muito lamenta, dado que sua memória atualmente se assemelha a um buraco negro; fez cirurgia bariátrica quando seu peso passou de 150 kg (bem magro quando jovem, não parecia que um dia Vina viria a ter sérios problemas de obesidade); não se dá muito bem com nenhum filho (um pretende-se youtuber, outro pretende-se designer de jogos de computador, outro é metido com grupos políticos radicais e faz transações nebulosas com criptomoedas). E, claro, imagino Nicinha: cinquenta e tantos anos, sem filhos, tentando sobreviver fazendo consultas astrológicas online; cabelos pintados em casa; teve uma fase meio ninfomaníaca, mas já faz quase cinco anos que não faz sexo (entrou em menopausa antes dos cinquenta e decidiu não fazer reposição hormonal, etc., etc.); duas falências no currículo; um curso de superior de psicologia não concluído (o que não a impede de apresentar-se eventualmente como “coach”). Isso posto, cabe aqui a pergunta: o pior já passou? Pois é, parece que “o pior” nunca passa. E o “pior” de antigamente, olhado com suficiente distanciamento temporal, já não nos parece tão ruim assim. Na verdade parece até bom.

De fato, é meio difícil dizer o que era caracteristicamente ruim em 1988 (a data, claro, é uma figura de linguagem que resume o período). Os fatos objetivos de então não parecem melhores ou piores do que os de qualquer outro tempo, afinal, a realidade sempre é composta por coisas boas e coisas péssimas. A ruindade de 1988 talvez estivesse menos nos fatos observáveis do que numa espécie de má vontade generalizada, infiltrante e debilitante, que contagiou todos os aspectos do real. Uma certeza, compartilhada por quase todo mundo, quanto à prevalência do pior. Uma espécie de niilismo barato, R$ 0,99, usado como moeda corrente, dinheirinho trocado para as pequenas despesas do dia a dia, dinheirinho fiduciário, dinheirinho sem lastro, nulo, dinheirinho de esmola, um monte de notas de baixo valor e um monte de moedas ensebadas (“Pô, qual é?, assaltou alguma igreja?”), Ferris Bueller dando uma notinha de cinco dólares ao hostess do restaurante besta de Chicago, o hostess olhando para a notinha com cara ne nojo, notinha de cinco dólares americanos, notinha de cem trilhões de dólares do Zimbábue, cada um por si, todo mundo na lona. Etc., etc. Talvez não exatamente por acaso existiu em Belo Horizonte, em 1988, uma boate de grande sucesso chamada The Great Brazilian Disaster. Talvez não por acaso a telenovela de maior sucesso em 1988 tenha sido Vale tudo, cuja sinopse pode ser enunciada como “pessoas mais ou menos horríveis fazendo o tempo todo coisas mais ou menos horríveis”. Talvez não por acaso o Bateau Mouche IV tenha naufragado na Baía de Guanabara no réveillon de 1988, num dos maiores tributos à negligência, imprudência e imperícia já vistos nesse país. (O caso Bateau Mouche, para além de sua concretude trágica, sua “tragédia de erros”, suas mortes, etc., revelou ter uma dimensão fortemente simbólica, de fatalidade, de inevitabilidade do pior, etc., simbolismo esse acabou ocupando o imaginário de um país inteiro.) Talvez não por acaso o humor brasileiro teve no período um de seus momentos mais férteis e desabridos (e engraçados) – se tudo vai irremediavelmente mal, talvez só nos reste mesmo cantar aquele tango argentino, “Pediatras peronistas elegem Nenem” (Carlos Saul Menem), ou a marchinha de carnaval “Wilza Carla explode na terça-feira gorda”, ou o grande sucesso de Oswaldo Montenegro “O humor engraçado de Mongol” (Oswaldo Montenegro e seu parceiro Mongol eram um dos mais frequentes alvos das gozações de O planeta diário).

E, sem dúvida, não por acaso o programa de TV de maior sucesso naquela época (estreou em 1989) foi o Documento especial, da Rede Manchete, que explorava o grotesco, o demencial, o extravagante, o horrendo, o “quanto pior, melhor”, programa cuja estética mundo-cão, circo de horrores, tinha razoável afinidade com o conteúdo explorado por Diegues em Um trem para as estrelas. A coincidência não é tão espantosa assim, já que essa propensão ao bizarro e ao monstruoso estava no ar, volatizada e atmosférica (Jean Baudrillard, um dos maiores intérpretes daquele tempo, dizia que por alguma misteriosa razão havíamos perdido nossas pulsões eletivas, nossas constelações de gosto, ficando no lugar apenas nossas repulsões, nossa negatividade, nosso rejeitar violento de tudo). Seria temerário afirmar isso na ocasião (como, aliás, era temerário afirmar qualquer coisa numa época tão insidiosa e escorregadia), mas não deixava de existir nesse culto ao desencanto radical e suas expressões mais tangíveis (o surfe ferroviário era uma delas, tema explorado, aliás, num dos episódios de Documento especial) a busca por um princípio de sanidade, ainda que por vias bem tortas. “Sim, a realidade é horrenda, mas ela é o que é. Pelo menos não estamos sendo enganados por nenhum desses charlatães que vivem dizendo belas e mentirosas palavras. Nunca mais ninguém vai fazer a gente de trouxa.”(O que é uma bobagem, claro. Sempre somos feitos de trouxas, de uma maneira ou de outra.) No quesito usos e costumes, trato entre semelhantes, todo mundo esculhambava todo mundo e isso não rendia processos a ninguém (o que pode soar como música para nossos contemporâneos ouvidos, dado que o ativismo judicial virou uma das pragas dos tempos presentes). Havia uma aspiração ao jogo aberto até mesmo na publicidade comercial, muito irônica (e divertida) no período, “Sim, bróder, é claro que a gente está te enganando, mas bola pra frente, relaxe e goze”. Todo mundo falava o que achava que tinha de falar e o.k., afinal um discurso é um discurso é um discurso, no fundo irredutível a qualquer outro discurso. O apelo (utópico, é claro) à liberdade irrestrita estava na boca até dos bisonhos menudos, que viviam cantando “não se reprima” (ao que acrescentávamos, “mate sua prima, com estricnina”). Tratava-se de liberdade, sem dúvida, ainda que meio capenga (e suspeita). (Livre como um táxi, como dizia o Millôr.) Em suma, havia uma interessante, ainda que arriscada, atitude de largar as rédeas, deixartudo correr pra ver simplesmente aonde a coisa ia dar. “A vida é uma vasta experiência que ainda não atingiu seus objetivos”, como está escrito-pintado num quadro do artista plástico Wesley Duke Lee (Wesley fez uma ponta em Cordélia, Cordélia, Rodolfo Nanni, 1971, no papel de um fotógrafo; seu desempenho é divertidamente péssimo, assim como divertidamente péssimo é o desempenho de Cazuza interpretando Cazuza em Um trem para as estrelas; nada contra não-atores esbanjando canastrice na tela, isso nos lembra o quanto nós mesmos somos canastrões em nossas vidinhas, o quanto parecemos desajeitados quando nos vemos gravados em vídeo, etc.). “Mil novecentos e oitenta e oito” foi uma vasta experiência que não atingiu objetivo algum porque a teleologia, a finalidade última das coisas, talvez não passe de uma ilusão, perniciosa como toda ilusão. 

(Ou não.)

O grande mérito daquele tempo talvez tenha sido o de não chamar o pior por outro nome, não o eufemizar. Nem Carlos Diegues, caracterizado por um “humanismo esperançoso” em boa parte de sua obra (a revista Mad, sem dúvida maldosamente, o chamou uma vez de Cacá Piegas), cedeu à tentação – não há qualquer concessão à esperança em Um trem para as estrelas. (Quer dizer, até há. Há saídas apontadas, prevalências, dado que não é a mesma coisa alguém ser “Vina” e alguém ser “delegado Freitas” – quem sabe mais, pode mais –, mas a coisa não chega a se materializar no filme como algo que pode ser chamado de esperança. Simplesmente porque isso não interessava muito na ocasião. Não só como também, nossos traumas relacionados à degeneração de autoridade em autoritarismo eram relativamente recentes, portanto era melhor manter a atitude de suspeita em relação a qualquer tipo humano mais autoral – ou seja, antes o anódino Vina assoprando seu sax do que um sargentão nos berrando “alto lá”.) Voltando à esperança: mesmo os episódios mais alegoricamente esperançosos do filme – a chuva de comida numa favela durante a crucificação de uma suposta “santa”, a decisão da personagem de Tânia Bôscoli de num único dia ir para a cama com todos os homens que conseguisse para gerar um filho independentemente de quem fosse o pai (alegoria de que a vida, apesar de tudo, deve continuar), mesmo esses apelos à esperança têm, nesse filme, um matiz marcadamente irônico, quando não mordaz – afinal, a decisão da bela Tânia é estapafúrdia, para dizer o mínimo, e a chuva de feijão e arroz não foi nenhum milagre, mas um simples descarte de comida estragada sobre uma favela, descarte sugerido, aliás, pelo delegado Freitas logo no início do filme, “deem tudo para os pobres, pelo menos eles morrem de barriga cheia”. 

Por não eufemizar o horrendo, Diegues realizou em Um trem para as estrelas talvez seu melhor e mais corajoso filme.

 

(29/09/2023)