LUIS ALBERTO SPINETTA, DE NOVO Eu poderia ter conhecido Luis Alberto Spinetta através de algum bestalhão, de algum crítico de música da Bizz, do Kid Vinil (que era gente boa, mas que evidentemente era um goiaba). Ou através daquela forma exortativa clichê que nossos irmãos esquerdistas bestalhões, goiabas e canalhas adoram, precisamos falar do rock argentino, etc. Mas não. Conheci o Spinetta através de um amigo, o Carlos, homem notável pela exatidão qualitativa de suas preferências. (Carlos, copacabanense do Bairro Peixoto, tem suas exatidões enraizadas em transes mediúnicos nos quais recebe mensagens do além vindas de uma falha magnética que paira sobre o bairro, o fenômeno foi descrito de maneira pormenorizada no livro Sancta Clara Spiritus Tumultuosus, do teólogo castrati Faustus Falsete.)
Eu vinha achando (aliás, no fundo ainda venho) que esse negócio de música já era. Uma parte de O som e o sentido, livro do José Miguel Wisnik que me acompanha desde 1989 (livro, aliás, de onde o Vladimir Safadle tira todas suas opiniões sobre música), me vinha vindo à cabeça direto – a parte apocalíptica em que Wisnik define a história da música ocidental (especificamente da música especulativa, na feliz expressão do compositor Flô Menezes), de Perotinus (século XII) a Stockhausen (aquela palhaçada de concerto para quarteto de cordas e helicópteros, coisas do tipo que os farofeiros culturais adoram), como a história da assimilação, via série harmônica, de intervalos (razões intervalares) capazes de tensionar o discurso musical, dado que a articulação do tal discurso se baseia no movimento tensão/resolução. O problema é que os intervalos, por causa do uso, se desgastam e perdem a capacidade tensionante. Pouco a pouco o que então era um sistema de articulação de alturas (duração, intensidade, timbre) vai dando lugar um aglomerado de tralhas sonoras, coleção de clichês, etc. Daí as tentativas de recriar o discurso musical empreendidas por Schoenberg (primeiro através do atonalismo livre, depois com o dodecafonismo) e outros, e outros, e outros. Tentativas que, na real, não deram em nada, criaram mais entulho sonoro, cacofonia, entropia, etc. Então é isso. Eu vinha tentando ver se alguma fonte sonora ainda conseguia me dar algum barato musical, tentando ouvir até ruído de motor de geladeira, por exemplo, de forma estética quando fui ouvir, sem esperar nada, o álbum Kamikaze, que Luis Alberto Spinetta lançou em 1982. E quase caí de costas. Como pude não ter conhecido o trabalho desse cara antes?
Spinetta colocou em dúvida minha convicção de que a música já era, de que eu já havia ouvido tudo que merecia ser ouvido, etc. Ele é um daqueles casos em que um aglomerado de contradições conceituais acaba dando certo, sem que consigamos explicar por quê. (É por isso que a cada dia que passa estou ficando cada vez mais fenomenológico: não sei o que é, nem por que é, mas tenho certeza de que é, etc.). Contradições porque, por exemplo, suas canções fluem como se fossem simples. Contudo, estão longe de ser simples ou intuitivas no sentido redutor, servindo-se de recursos harmônicos tremendamente sofisticados, recursos esses que geram, no caso de Spinetta, um universo sonoro alusivo (primo em segundo grau, às vezes em primeiro) ao Clube da Esquina, mas com um drive bem mais rock’n’roll do que o de Milton Nascimento, Lô Borges, Beto Guedes, etc. Esses artifícios técnicos, que, em outras mãos, não passariam de acordes suspensivos, trítonos, empréstimos modais, em Spinetta são absorvidos por uma potência sonora mais profunda e devolvidos como formas musicais renovadas. Dito de outra forma, Luis Alberto não deixa de ser devedor de linguagens musicais exauridas (todo mundo o é, nessa altura dos acontecimentos ou dos não-acontecimentos desse nosso velho e cansado mundo), mas elas, em suas mãos, como que ressuscitam, por algum milagre.
07/05/2025