EPPUR SI MUOVE Estou numa festa na Galeria Metrópole. A festa ocorre sobretudo no cinema, que está fechado há não sei quantos anos, mas se espalha para fora dele (pessoas que saem para fumar, etc.). Passam de duas da manhã. Observo uma mulher alta e elegante, com pinta de quem morreu em algum acidente aéreo (jatinho particular, etc.) na primeira metade dos anos oitenta. Ela acende um Gauloises Caporal com um isqueiro Zippo em aço escovado sem nada escrito. Vendo-a penso em voltar a fumar, estamos todos mortos (mortos eppur si muove), não tem mais doutor Dráusio Varella ou pneumologista ou oncologista pra encher o saco. Digo pra altona tomar cuidado pra não ter uma overdose de nicotina, Gauloise Caporal sem filtro, etc. Ela sorri, convidativa, emenda o sorriso numa risada e diz que antigamente fumava Ella, Charm, Galaxy Slims, essas coisas, mas que de uns tempos pra cá começou com o Gauloises, o cigarro que um tio seu, monegasco, fumava. De dentro da festa começa a tocar I ran, A Flock of Seagulls, e deduzo que a mulher nasceu em 1937 e morreu em 1980, 81, ou seja, tem 43, 44 anos, e que ela dirige um Mercedes SL 350 ano 1974 e que sairemos da festa juntos e que iremos para um apartamento de 400 m2 na Rua Haddock Lobo e que haverá bons quadros na parede desse apartamento e que falaremos de Mark Rothko e da radiância que parece emanar de suas telas enquanto tirarmos as roupas, etc. Então o Julinho Safardana aparece e eu noto que ele já bebeu além do limite e penso que se não o controlar daqui a pouco ele vai fazer alguma merda. Ele pede um cigarro do Sartre pra altona-elegante e diz que acabou de ver o Bolinha e a Telma Lip lá dentro da festa e pergunta pra altona se não foi ela que uma vez pegou o Nelson Ned no colo lá no Gallery e ficou brincando com ele de serra-serra-serrador. Decido fumar e vou até o sujeito que vende cigarro, um magricelo só de barba que minha mãe diria ter cara de tísico, e vejo as marcas de cigarro à venda, Continental, Advance, Minister, Marlboro, John Player Special, compro um Marlboro e fósforos e acendo e dou a primeira tragada e sinto-me encharcado de dopamina e penso, como é bom estar vivo-morto e poder fazer coisas como fumar e conversar com mulheres altas e elegantes e ter indefinidamente trinta e seis anos (morri em 2007, etc.). Volto ao Julinho e à mulher (túmulo no Cemitério do Morumby, tem toda pinta) e eles estão debatendo por quanto dinheiro topariam ver o Bolinha e a Telma Lip transando (o Bolinha come a Telma Lip ou a Telma Lip come o Bolinha?), o Julinho diz que nem por dez mil dólares toparia e a altona diz que, pensando bem, até que deve ser uma experiência válida ver o Bolinha e a Telma Lip, etc. O Antonio Marcos passa por nós e dá um hello pro Julinho e já sei que quando ele voltar a falar com a altona ele vai explicar que ele é o Júlio Barroso da Gang 90 e que acabou conhecendo muita gente no meio musical por causa disso e vai falar que o Antonio Marcos vinha defecando o fígado antes de morrer, tal era o estado avançado de sua cirrose, e dou uma piscada pra ela e faço com a cabeça um gesto sutil de vamos embora? e ela faz com a cabeça um gesto sutil de o.k. e logo saímos e o manobrista traz seu carro, um Alfa Romeo 2300, e ela me pergunta pra onde eu quero que ela me leve e eu respondo, você decide, e ela diz, o.k.
I RAN São três horas da madrugada e saio para correr. A temperatura está em onze graus. Subo a Pedroso Alvarenga, o Vaca Veia, o prédio onde ficava a Escola Amoreco (as tias lésbicas e sádicas que puniam os meninos que faziam xixi nas calças dando banho deles com a porta do banheiro aberta e fazendo-os vestir calcinha), a igreja da Valda, etc. Chego à Avenida São Gabriel e observo o estacionamento onde antigamente existia o Urso Branco e entro numa ruazinha por ali, depois na Groenlândia, depois na Rua Veneza, depois na Alameda Campinas. Atravesso a Paulista, avisto o Maksoud Plaza, dou o primeiro gole no meu Clight com cloreto de sódio, cloreto de potássio e sulfato de magnésio, imagino que se eu encontrasse agora o fantasma do Layne Staley (Alice in Chains), hóspede do Maksoud, eu iria pedir um autógrafo pra ele. Sigo pela Cincinato Braga e desço a Joaquim Eugênio de Lima tentando ignorar o fato de que meu tendão de Aquiles direito está começando a doer, que apesar de estar me sentindo aquecido por causa da frequência cardíaca alta eu sei que a superfície de suor sobre minha pele está gelada, que se eu quebrar não trouxe celular pra chamar Uber, etc. Desço a Rua dos Franceses e entro na Conselheiro Carrão e sigo por ela até a Conselheiro Ramalho e passo em frente ao Madame e viro na Rua Fortaleza e viro numa outra rua cujo nome eu sempre esqueço e começo a voltar ao Itaim.
01/06/2025