O AVESSO DA VIDA, DE PHILIP ROTH, por Eduardo Haak

Você tem trinta e nove anos, é alto, moreno, atlético, boa pinta. Você, não só como também, é um dentista bem reputado. É casado e tem três filhos. Tem amante, é claro. Sua amante é sua assistente no consultório, a quem você se refere como “Boca”, por causa de suas, hum, habilidades orais. Num check-up de rotina você, que se chama Henry Zuckerman, descobre que está com um problema cardíaco, umas obstruções, etc. Como o ano é 1978, ainda não há stents. Ou você se trata com betabloqueador, ou se aventura numa ainda arriscadíssima cirurgia de ponte de safena. Você experimenta o betabloqueador, mas o medicamento te deixa impotente. Você se desespera. Passa a surrar eventualmente sua amante. Resolve, então, entrar na faca, mas morre na mesa de cirurgia.

Aquilo que acontece não pode desacontecer, etc. Mas estamos no reino da ficção, onde todas as possibilidades do real podem ser testadas, sem que uma contradiga a outra. Possibilidades, no plural. Na primeira, você faz a cirurgia e morre. (Sua mulher, Carol, discursando no velório, afirmou que você fez a cirurgia por ela, em nome da plenitude do amor conjugal, etc. Talvez desconfiasse da “Boca” e resolveu marcar território, mesmo depois de você morto.) Na segunda, você sobrevive à cirurgia, mas passa por uma metanoia (ou colapso nervoso) que acaba te levando para Israel, onde você se torna uma espécie de discípulo de um sionista radical chamado Mordecai Lippman e vai morar num colonato em Hebron, Cisjordânia, deixando para trás mulher, filhos, “Boca”, consultório elegante em Upper East Side, etc. Seu irmão, Nathan Zuckerman, com quem você está rompido desde que ele publicou um livro chamado Carnovsky, livro em que os judeus em geral e a comunidade judaica de Newark, New Jersey, em particular (e a família Zuckerman mais particularmente ainda) é tratada de forma jocosa, seu irmão Nathan foi atrás de você para interrogá-lo sobre essa coisa de morar num assentamento em Hebron, andar armado, aprender hebraico depois de velho, etc.

Na terceira “possibilidade do real” quem teve o problema cardíaco, ficou impotente, resolveu ser safenado e morreu na cirurgia foi Nathan, o tal escritor que demonstrou não ter nenhum esprit de corps em relação à judeuzada de Newark, etc. (Há analogias entre Nathan Zuckerman e seu Carnovsky e Philip Roth e Portnoy’s complaint. Roth também foi acusado de fornecer farta munição para os antissemitas.) Henry, seu irmão, depois do velório vai sorrateiramente ao apartamento de Nathan e descobre que Nathan estava escrevendo um livro cheio de indiscrições sobre o caso que Henry vinha tendo com sua assistente. Surrupia todas as páginas com as tais indiscrições, etc. Ofende-se mais uma vez com a convicção central de Nathan, sua cláusula pétrea, convicção de que as pessoas comuns não passam de personagens literários pouco amadurecidos à espera de um escritor que lhes dê plenitude. E, se as pessoas comuns não passam de idiotas à espera de um escritor que exponha sua idiotice, que assim seja. (Essa discussão moral de “quem representa os verdadeiros valores da vida” perpassa a obra de Roth. O pêndulo sempre está oscilando, ora para os observadores debochados dessa criatura patética, o ser humano (por acaso judeu), ora para o outro lado, pessoas decentes, trabalhadeiras, abnegadas, que se perguntam se é justo que pessoas decentes, trabalhadeiras, etc., sejam tratadas na base do chicote por um escritor sádico, narcisista, sem qualquer senso de responsabilidade ou moralidade, que sacrifica tudo pela piada, de preferência antissemita. Até onde li Philip Roth, seu livro que mais advoga o lado dos humanos-por-acaso-judeus trabalhadores, decentes, abnegados, etc. é Pastoral americana. Um livro, como não poderia deixar de ser, bastante chato.)

Noutra “possibilidade do real” Nathan está impotente e se apaixona por uma vizinha recém-mudada para o prédio, inglesa, casada com um figurão do serviço diplomático. A mulher se chama Maria. Os dois têm um caso sem sexo, mas com muita conversa. (Maria é inteligente e loquaz, mas não demora muito a se mostrar convencional, enfadonha, etc. Talvez toda mulher, a despeito de seu brilho eventual e das cinco ou seis palavras sacadas do léxico feminista que ela use em profusão, esteja mesmo destinada a terminar bordando seu paninhos de prato e discutindo o preço das cortinas novas.) Nathan propõe que Maria se separe do marido e se case com ele. Aos quarenta e cinco anos e, no entender dele, feminilizado pela impotência, Nathan passou a acalentar a ideia de ter um bebê. Fará a cirurgia arriscada, etc. Maria, não sem hesitar, acaba rejeitando a proposta de Nathan.

Noutra, “possibilidade do real”, Maria se separou do figurão do serviço diplomático e engravidou de Nathan, o safenado. Precisarão se estabelecer na Inglaterra, por causa de um termo do divórcio com o figurão, etc. Vão a Gloucestershire para que Nathan conheça a sogra e as cunhadas. Elas são esnobes e provincianas, e há, sim, algo de antissemita nelas, mas Nathan exagera na reação. Tudo na Inglaterra lhe parece um dedo acusador lhe apontando e dizendo judeu judeu judeu. (Woody Allen em Annie Hall falando do vendedor da loja de discos lhe dizendo que os discos de Richard Wagner estavam em oferta, etc., etc.) A paranoia escrutinadora de Nathan acaba levando Maria a dizer coisas que causam um estrago irreparável na relação deles. Interrogada, ela diz que, sim, não gosta de ir a Highgate e Hampstead, bairros de Londres com forte presença da comunidade judaica, porque não gosta de se sentir uma estrangeira em seu próprio país.

O livro termina epistolarmente, Nathan cá, Maria lá, tudo é ficção, nada é ficção. Você, leitor, está com um monte de impressões boiando em sua mente. Há algo de insatisfatório nessa coisa de realidades alternativas que se sobrepõe e se contradizem sem se contradizer. (Chispa, Eudes, isso não é assunto pra mocorongos.) Todas resvalam para a mesma vala comum de projetos existenciais antes abortados do que fracassados, abortados por desinteresse e exaustão. (O pós-modernismo, etc., etc.) Mordecai Lippman, o sionista radical, mereceria um percurso dramático completo, não a breve cintilação seguida do arbitrário abandono. Idem os outros personagens. O avesso da vida, Counterlife, publicado em 1986, reforça a impressão de que Philip Roth escreveu uma única obra-prima, Portnoy’s complaint, e escreveu outros trinta livros (uns melhores, outros piores) para desconversar o Portnoy. (Leiam o Portnoy, mas na edição antiga, da Abril. A tradução atual, de Paulo Henriques Britto, eliminou uma série de achados sensacionais e hilários da tradução anterior, como atrevidona e Maricas da Palestina.)

 

26/11/2023