ALÔ, ALÔ, CHAMANDO, por Eduardo Haak

O SER E O TEMPO Se eu tivesse meios próprios e bastantes creio que me isolaria num apartamento antigo nos Jardins. Jogaria o celular fora e ligaria na tomada um telefone de discar da Siemens. Compraria uns equipamentos de som da Quasar, um Chevrolet Diplomata 1981, uma TV de tubo e um aparelho de videocassete. Poria pra passar o tempo todo gravações do Goulart de Andrade na Globo (Comando da madrugada, com aquela vinheta que tocava Sweet Lucy, do Raul de Souza). Consumiria as noites escrevendo cartas para mulheres nascidas entre 1963 e 1967. Receberia algumas dessas mulheres, ouviria suas lamúrias, diria que elas continuam lindas, ainda que não fosse (e provavelmente não seria) o caso.

O SER E O PORRA NENHUMA O ser, em sua indeterminação, se equivale ao nada. Só no tempo o ser se manifesta, ou seja, determina-se. (Hegel, né?) O irresolvido paradoxo de Aristóteles: as coisas existem como individualidades singulares e conhecemos apenas generalidades. A raiz da separação entre ontologia (o ser) e a epistemologia (o conhecer). Etc., etc.

DIREITA FESTIVA Descubro com considerável atraso que Ruy Goiaba (Rogério Ortega) está escrevendo em Crusoé. Ruy era a estrela do Wunderblogs.com, que era um coletivo de então (2004) jovens blogueiros "de direita". Na época o achava muito divertido e engraçado. Lê-lo agora me deu uma sensação de anacronismo, como se estivesse baixando algum mp3 no Limewire.

JACKASS FOREVER Vejo com algum atraso Jackass Forever, USA, 2022. O humorismo stunt do grupo também envelheceu. Muita exibição peniana e muita brincadeira com esperma, duas coisas que definitivamente não fazem meu gênero. O único dentre eles que continua engraçado é o Steve-O. A cena dele vomitando, pegando do vômito o dente postiço que caiu e colocando o dente no lugar é hilária porque claramente foi espontânea. 

EVH FRANKENSTRAT Deve ser porque estou ficando idoso (e um idoso chato), mas cada vez mais acho que as guitarras parecem brinquedos (T. W. Adorno disse quase exatamente isso num de seus ensaios, um dos poucos grandes acertos daquele careca comunista de merda). A foto de uma garotinha de uns nove anos dedilhando uma EVH Frankenstrat (a guitarra criada pelo Eddie Van Halen), que vejo no Instagram, parece confirmar essa minha suspeita.

PIADA VELHA Em 1984, Faustão anunciava no Perdidos na noite o lançamento do Condomínio Residencial Roberta Close, com a entrada principal pelos fundos. (Há-há, é a cara do Faustão essa piada.)

EINSTEIN ON THE BEACH Francamente, não tenho o menor saco pra papo de buracos negros, teoria da relatividade, velocidade da luz, etc. A escala em que tudo isso existe é inimaginável (ou precariamente imaginável) e tudo que é inimaginável é inconcebível. Esse assunto de física quântica e quejandos sempre redunda numa caricatura de inteligência que deveria impressionar pessoas de no máximo doze anos de idade. 

NÍGER Olha só, olha só, o Níger sendo palco de uma disputa geopolítica entre Eurásia e Ocidente. Sempre tive um certo fascínio por esse país, por sua miséria avassaladora, primitivismo, isolamento, etc.

ROARING TWENTIES Muitos amigos com covid em setembro de 2023. Essa nossa década de vinte periga vir a ser conhecida no futuro como os Roaring (rugido) Twenties por causa das tosses, corizas, expectorações, etc.

CAPAS DE PLAYBOY QUE NÃO EXISTIRAM, MAS QUE MERECIAM TER EXISTIDO Lilia Schwarcz, em setembro de 2023. A historiadora e antropóloga Lilia, bonita e enxutaça aos sessenta e cinco anos, poderia ser a capa da Playboy do próximo mês. Nas fotos ela apareceria fantasiada de Minnie Mouse, já que ter cara de ratinha é um de seus charmes. 

GUIA POLITICAMENTE INCORRETO DA LITERATURA Herculano respondendo ao pedido da prostituta Geni para que ele parasse de humilhá-la: "Nada te humilha. Você não passa de um mictório. Público". (Toda nudez será castigada, Nelson Rodrigues, 1965.)

 

(28/08/2023)


TERRA EM TRANSE, DE GLAUBER ROCHA, por Eduardo Haak

Dentre todas declarações delirantes que Glauber Rocha, 1939-1981, costumava proferir, já que ele parecia gostar do papel de trickster, faltou Glauber dizer que na verdade ele era um autor teatral elisabetano, um homem do século XVI. Na verdade não seria uma declaração delirante. Nem essa minha afirmação tem qualquer sombra de ironia. Terra em transe é teatro elisabetano até a medula óssea – os personagens, além de pesadamente “teatrais”, falam em versos brancos (uma espécie de, aliás, versos bem ruins). Seu tema, o exercício do poder e os conflitos decorrentes disso, é caro a Shakespeare, Marlowe, etc. Há também os elementos arcaicos, batucadas, cantorias em ioruba, ewá, ewá, majô, orgias, gargalhadas cínicas (de fauno de tapete, como diria Nelson Rodrigues) que completam o barroquismo atordoante oferecido ao espectador. Isso tudo rendeu num bom filme? Não, apesar da presença impactante dos atores Paulo Autran, Paulo Gracindo, José Lewgoy e, consideravelmente atrás destes, Jardel Filho. (Um monte de beldades ornamenta o filme – Danuza Leão e outras que não sei quem são, mas que são bonitas pacas.) (Aliás, nunca havia notado como Danuza e Mariana Weickert são semelhantes. Fiu-fiu pra elas.) Voltando aos apesares, apesar da fotografia inspirada de Luiz Carlos Barreto, das locações deslumbrantes no Parque Lage, dos depoimentos elogiosos de Martin Scorcese e David Byrne, apesar desses apesares todos, Terra em transe não é um bom filme. 

A boa história – quiçá a grande história – é centrada no bom personagem (quiçá grande). Jardel Filho, a despeito dos intensos esgares e dos supostos protestos de sua consciência, não passa de um pequeno canalha às voltas com grandes canalhas. Pretenso poeta, jornalista, aspone dos poderosos que estiverem mais à mão, sempre sugerindo estar com o passe à venda. Conhecemos bem o tipo. Poderia ser um bom personagem se nemesis devidamente o punisse. Mas ele termina como uma espécie de exército de um homem só, herói em stand by que oportunamente vai mostrar a que veio. (Conhecemos o tipo, também.) Raso e turvo, cheio de falsa consciência. De coisas assim que maus personagens (e maus sujeitos) são feitos. 

O brilho dos outros não chega a compensar Jardel. Lewgoy, Gracindo e Autran são calhordas em pleno exercício de suas calhordices. Mesmo que brilhantes, dramaturgicamente estão em homeostase. Gracindo é o magnata da imprensa que precisa sempre estar de bem com os poderosos. Lewgoy é o demagogo “de esquerda”. Autran é o ex-radical que hoje professa alguma bizarrice como “anarquismo cristão” (as imagens dele empunhando um crucifixo e uma bandeira preta são ótimas, deveriam estar no lugar daquela imagem do Jardel tapando a boca do pelego, que é a imagem mais conhecida do filme). Apesar do “anarquismo cristão”, Autran na verdade é chegado numa realpolitik da pesada. O povo que se exploda. Se você estende a mão a essa gente, logo vão exigir seu braço. Etc., etc. Poderia ser o personagem mais interessante do filme. Talvez seja.

Há uma ponta ou outra curiosa em Terra em transe. Flavio Migliaccio, o futuro desvalido oficial das novelas da Globo (pharmakós, bode expiatório), uma hora aparece gritando que ele na verdade é que é o povo, já que tem sete filhos e não tem onde morar. É enforcado por causa disso (no governo do demagogo “de esquerda” José Lewgoy, hem?) e, como se não bastasse, ainda enfiam o cano de uma arma em sua boca. (A arma na verdade estaciona em seus lábios, de onde pende como um cachimbo mórbido. Há, há, Flavio Migliaccio sempre se dando mal.) Clóvis Bornay fantasiado a caráter aparece na recriação da missa inaugural do Brasil, protagonizada pelo possesso Autran. Telma Reston, ainda sem os seios gigantes, aparece como favelada. Acho que o Pereio (que uma época andou dizendo que ia dinamitar o Cristo Redentor, etc.) também faz uma ponta, mas não tenho certeza.

O prestígio de Glauber, as confusões em torno dele e sua permanente encenação de gênio incompreendido foram muito deletérias para a cultura brasileira. Glauber, por exemplo, “deitou jurisprudência” para que Caetano Veloso realizasse seu péssimo filme, Cinema falado, de 1986, cinema novo pra lá de tardio. Contudo, pior do que isso é o fato de Glauber Rocha ter se consolidado como sinônimo de cinema brasileiro no imaginário coletivo. Pouco importa que não seja sinônimo de coisa alguma e que, comparado a outros cineastas, sua produção seja bastante modesta. Para não me estender demais em comparações, limito-me a compará-lo a Rogério Sganzerla, já que há afinidades estéticas entre ambos. 

Sabe-se lá por quais razões ou falta de razões, Glauber Rocha chamava o Rogério Sganzerla de menino egoísta. Pois Sganzerla fez em O bandido da luz vermelha o que Glauber foi incapaz de fazer em Terra em transe. Luz, Paulo Villaça, é um boçal assumido e J. B. da Silva, Pagano Sobrinho, põe no bolso o trio de canalhas do filme de Glauber. “No meu governo os pobres finalmente vão ter o que mascar, vou distribuir chicletes a todos”, discursa o esplêndido J. B., candidato à presidência da Boca do Lixo. Villaça não recua ante o “cumpra-se”, enquanto Jardel vaga pelo deserto (Barra da Tijuca em 1967) declamando seus flatus vocis, curtindo seu solipsismo e apontando sua metralhadora de brinquedo para o nada. O Bandido é uma sagaz, hilariante e cheia de dinamismo peça de humor negro e Terra em transe mal se aguenta nas próprias pernas por causa de todo entulho de que se constitui. Inteligibilidade é credibilidade, alguém já disse, e concordo. Saímos de Terra em transe atordoados, emacumbados, e saímos de O bandido gargalhando e dizendo yeah. Vocês que escolham que filme vão ver.

(21/08/2023)


ALÔ, ALÔ, CHAMANDO, por Eduardo Haak

1978 Ouvindo "O medo de amar é o medo de ser livre", de Beto Guedes, e vendo uma propaganda da VW Brasília, fulana que amava sicrano que amava beltrana, etc., fico com a sensação de que o tempo devia ter parado em 1978. Não sei o que eu quero exatamente dizer com isso. Não sei se faz algum sentido proferir uma afirmação como essa. Como seria isso, o tempo parado em 1978? Não sei. Mas creio não estar enganado ao dizer que o clima de 1978 tinha uma calidez que só podemos lamentar que, sabe-se lá por quais razões, já não exista há muito tempo. Impossível pensar num Beto Guedes de vinte e poucos anos compondo e gravando "O medo de amar" em 2023.

O LIXÃO O Lixão patrocinava o programa que o Mojica, Zé do Caixão, teve na Record em 1981. Era uma loja de móveis usados que ficava na Praça Marechal Deodoro. Seu logo usava uma tipografia estilo cartaz de wanted de velho oeste.

JACINTO LEITE AQUINO REGO O livro do Maurício Stycer sobre Jacinto Figueira Jr., o Homem do Sapato Branco, não é ruim. A pesquisa que ele fez traz algumas informações interessantes. Tem um buraco ou outro, como ele não mencionar o Homem do Cravo Vermelho, que Jacinto fez na TV em algum momento entre 1983 e 84. O mais legal é que, a despeito de Stycer e Bia Abramo (que assina a burocrática orelha), o livro capta e expressa até que bem a presença exuberante do "má viu, lindô".

DURVAL DISCOS Vejo uns discos de vinil na vitrine de uma loja na Rua Augusta. Tudo de 150 reais pra cima. Em 2001, 2002, as pessoas jogavam no lixo - literalmente - seus vinis, que eram vendidos em lojas de usados por 1 real (e dava pra achar muita coisa boa por 50 centavos). Lembro-me de uma reportagem na Veja São Paulo, mais ou menos dessa época, sobre a euforia das pessoas com o CD, que estava desbancando o vinil, etc. Uma fulana com cara de coelho aparecia numa foto, segurando um CD, o "Yellow submarine", dos Beatles. Ela havia comprado o CD mesmo sem ainda ter um aparelho para tocá-lo. Dizia a fulana que o disco de vinil era "tecnologicamente ultrapassado". Etc., etc. A Vejinha devia procurar a cara de coelho hoje, trinta anos depois, pra fazer uma nova reportagem. Aposto que ela ia aparecer segurando um vinil usado de "Yellow submarine", comprado por 250 contos, com um papo de que "o vinil tem um som muito mais robusto que o CD". ("Durval discos" é um filme de 2003, dirigido por Anna Muylaert. Um filme bem ruim cujo único atrativo é a Marisa Orth no auge da gostosura.)

ALIENAÇÃO Não faço a mínima ideia de quem seja Larissa Manoela e, passando os olhos por alto nas notícias, faço questão de continuar não sabendo.

NETFLIX Às vezes entro em alguma sala e a TV está ligada no canal Netflix. Bastam quinhentos milésimos de segundo para que eu constate, como todas as vezes: a Netflix criou um novo tipo de kitsch. O kitsch netflix. Está em tudo que eles produzem. Não deixa de ser um feito. 

CLICHÊS Por que quase todo mundo diz que é tímido? Eu, por exemplo, não sou tímido, embora em certas situações, eventualmente, me sinta intimidado. Normal. Outro clichê é o suposto elogio, "ah, fulano é legal, é um cara supersimples", geralmente usado para descrever algum ricaço que, vez ou outra, troca meia dúzia de palavras com o zelador, "e aí, Raimundo, o coringão ganha ou não ganha hoje?". Nada tenho contra pessoas complexas e, até mesmo, arrogantes. Pra dizer a verdade costumo gostar de pessoas assim.

JAVIER MILEI Milei é uma mistura do general Manuel Belgrano (o cabelo zoado e as costeletas), Carlos Menen (dolarização e costeletas, "Pediatras peronistas elegem neném") e Diego Maradona (as ênfases e aquelas cantorias no meio da rua com o zé-povinho, pulando e marcando o tempo com a mão). Milei vai ganhar a eleição com 100% dos votos.

GAROTO DO PARQUE Numa época, acho que entre 2007 e 2009, vi direto o ex-jogador Roberto Rivelino. Ia a um café e lá estava ele. Olhava para dentro de um restaurante e, batata, lá estava o Rivelino. Isso aconteceu umas cinco ou seis vezes. Que eu saiba não éramos vizinhos. Casualidade total. Seria caso de até jogar no bicho, apostar no coelho, 10 (o número de sua camisa).

TEORIA DA CONSPIRAÇÃO QUE NÃO EXISTE, MAS QUE VAI ACABAR EXISTINDO Elvis Presley supostamente morreu em 16/08/1977. Um dia antes, 15/08/1977, um observatório astronômico em Ohio, apontado para a constelação de Sagitário, registrou um possível sinal de vida extraterrestre, o tal do Wow! signal. A linha que mostra o tal sinal tem os caracteres 6EQUJ5, que, se observarmos com alguma atenção, aludem aos caracteres ELVIS - 6EQUJ5, 6EQVJS, 6EQVI5, 6ELVI5. Elvis, portanto, não morreu, mas foi abduzido e vive hoje num exoplaneta a 50.000 anos-luz do sistema solar.

CAPAS DE PLAYBOY QUE NÃO EXISTIRAM, MAS QUE MERECIAM TER EXISTIDO Bia Nunes, em qualquer mês de 1982. A atriz Bia Nunes nunca foi propriamente linda ou esfuziante, mas sua discreta beleza era daquele tipo que vai se infiltrando em nossa percepção até que um belo dia dizemos pra nós mesmos, "pô, essa fulana é altamente pegável, hem?".

GUIA POLITICAMENTE INCORRETO DA LITERATURA "Tenho um desprezo solene pelos pobres. A patuleia. A escumalha. Sujos, ignorantes, interesseiros, safados. Escrotos, como os vermes. Sempre engravidando. E engordando. E roubando e matando. E sendo atropelados." ("Valsa negra", Patrícia Melo, 2003.) 

(17/08/2023)

ALÔ, ALÔ, CHAMANDO, por Eduardo Haak

BARBIE ACUSA DONO DAS CASAS BAHIA DE VENDER SOFÁ JÁ TESTADO A vida não está mole pra ninguém. Desde que saiu de Barbieland e foi morar em Vicente de Carvalho, Guarujá, Barbie vinha tentando defender uns trocados vendendo na praia de Pitangueiras chá mate e biscoito de polvilho Globo falsificado. A família Marinho, que é dona da Rede Globo de Biscoitos de Polvilho e Televisão, não gostou nadinha dessa história e soltou os cachorros pra cima da pobre Barbie, que, privada de seu sustento, passou meses matando cachorro a grito. A situação só melhorou um pouco quando Barbie, já afônica de tanto gritar com os pobres cachorros, conseguiu um emprego de vendedora nas Casas Bahia. Contudo, logo começaram a ocorrer atritos com o patrão, o hebreu baiano ACM Klein, vulgo Carlo Mossy, que passou a insistir para que Barbie trabalhasse todo dia depois do expediente para que ela testasse todos os sofás da loja. Depois de muito sofá testado e depois de Mossy descumprir sua parte no trato, que seria rodar a continuação de "Giselle" tendo Barbie no papel principal, a moça resolveu botar a boca na trombone. (O que lhe deu um certo alívio, já que seus lábios relaxaram um pouco com a embocadura do trombone. Ficar botando a boca por muito tempo sempre na mesma coisa cansa, não é mesmo?)


LEVOU ROLEX NA BUNDEX O ajudante de desordens de Jair Bolsonaro, o sargento-coronel Mauro Cid Guerreiro, foi visto com uma pistola municiada com balinhas Tic-Tac tentando passar nos cobres um tique-taque da marca Rolex na praia de Toque Toque Retal, São Sebastião, SP, isso logo após ter se apresentado por lá com sua banda de axé marcial Chiclete com Banana de Dinamite. Leilão (ou Leilinha, para as íntimas), uma das vocalistas do grupo, acabou arrematando o Rolex por 60.000 volts (350.000 amperes, no câmbio hidramático do dia). Quando descobriu que o relógio era uma falsificação comprada na Galeria Pagé, Leila entrou em estado de choque e precisou ser submetida a várias sessões de eletroconvulsoterapia na cadeira do dragão do dr. Ustra, o famoso e brilhante eletroconvulsoterapeuta.


TITÃS, O ENCONTRO Alô, alô, ô meus! Aqui quem fala é o repórter provinciano Adoniran Baboseira transmitindo o show dos Titãs direto da Passarela Marcelo Fromer, no Itaim-Bibi, São Paulo, a cidadezinha caipira onde imperam o bairrismo, a fofoca e o "quem chifrou quem". O show, que faz parte da turnê Titãs Encontro, está bem bacanudo, embora a acústica dessa passarela não seja das melhores, muito barulho na Juscelino, tá ligado, mano?, especialmente dos motoboys costurando pela direita e fazendo o diabo com suas Hondas Titans. Outro problema é que o juiz da partida, Dulcídio Wanderley Boschilia, já expulsou cinco dos Titãs do palco e parece estar a fim de meter o cartão vermelho em todo mundo. (Corre a fofoca aqui na província que o Dulcídio não curtiu muito ter sido incluído na letra de "Nome aos bois" e resolveu se vingar.) O público parece não estar se importando muito com os problemas e acompanha o show com entusiasmo, cantando agora a plenos pulmões a modinha "Clitóris", essa edificante obra-prima do cancioneiro paulistano, quiçá brasileiro. (Paulistano raiz - raiz e burro pra caralho, né? - diz "clítoris", proparoxítona, assim como diz "estrupo" e "por causa que". A lista desses barbarismos é tão grande que daria pra encher o Morumbi, o Allianz Parque e o Itaquerão, que, o.k., são campinhos de futebol de várzea, mas que somados até que dariam um campão.) Bom, pessoal, eu já vou me recolhendo que nove da noite é hora de capiau ir pra cama (no meu caso o Cemitério da Quarta Parada Dura, onde moro no túmulo do samba em companhia do Borba, o gato, e dos restos mortais do Mussum). Vai um chopps e dois pastel aí?


CHAT GPT VENCE O PRÊMIO LITERÁRIO JABUTI Venceu o Grande Prêmio Literário Parati de F1 o piloto Chat GPT, da equipe Jabuti-Cágado-Cagado. Apesar de ter tido durante a prova vários problemas mecânicos em seu bólido, uma Parati LS 1985 em péssimo estado, Chat caiu nas graças dos jurados, que se renderam à grande inventividade de seus versos, versos como "o ônibus corre na pista, pau no cu do motorista, o ônibus corre ligeiro, pau no cu do passageiro". A próxima etapa do campeonato será o Grande Prêmio Nobel de F1, na Suécia, mas já corre à boca pequena que quem vai ganhar esse prêmio é uma escritora de quem nunca se ouviu falar, procedente de um país idem e que foi acusada de usar o Chat GPT para escrever seu romance mais desconhecido, "Clitóris", livro que narra um horripilante caso de mutilação genital, especificamente o caso de um titã que roubou um clitóris pra botar numa música.


(10/08/2023)





LUIS ALBERTO SPINETTA, por Eduardo Haak

Luis Alberto Spinetta, que viveu de 1950 a 2012 num universo paralelo chamado República Argentina, tinha aquela elegância tipicamente ectomorfa que o Stewart Copeland, baterista do The Police, também tem. (Os dois, aliás, são bastante parecidos.) Spinetta era cantor, compositor, guitarrista. Sua obra é deslumbrante. Não o conhecia até poucos dias atrás e desde então venho tentando entender por que um artista tão notável é (e vai continuar a ser) rigorosamente desconhecido no Brasil.

Quando vi pela primeira vez o álbum das Mercenárias que exibe uma cédula de quinhentos pesos argentinos na capa ("Cadê as armas?, lançado em 1986) tive aquela sensação que nos ocorre sempre que nos deparamos com algum símbolo que expressa uma verdade que nem sempre, num primeiro instante, conseguimos verbalizar. "É isso!", pensamos quando coisas assim acontecem. Mas "é isso" exatamente o quê? Um símbolo, como bem disse Olavo K. Langer, é uma matriz de intelecções. Não é propriamente isso ou aquilo. Disso - do símbolo - partimos em direção de algo. Algo ainda ignorado e não sabido.

A sensação de que uma nota de quinhentos pesos é uma imagem perfeita para um disco de uma banda brasileira chamada As Mercenárias, para além das suspeitas iniciais de uma simples e corriqueira provocação bairrista, tem a ver na verdade com a experiência de estranhamento que sempre, de uma maneira ou de outra, temos ao nos depararmos com qualquer coisa que venha da Argentina. Para o brasileiro, o argentino é o estrangeiro absoluto. E isso não tem a ver com qualquer tipo de birra, má-vontade ou preconceito. Parece mais uma lei, se não ontológica, ao menos psicológica.

Fazendo uma analogia com o "nada mais antigo que o passado recente" de Nelson Rodrigues, talvez nada seja mais longínquo do que aquilo que é relativamente próximo. Às vezes parece que do outro lado da fronteira - não qualquer fronteira, mas precisamente aquela que separa Foz do Iguaçu de Puerto Iguazú - não existe propriamente um país, mas uma galáxia a bilhões de anos-luz. 

A verdade é que os países (todos os países) se traduzem uns para os outros de modo precário, sempre. (Exceto por meio da literatura. Enquanto leio Borges não tenho dúvida de que me torno mais argentino do que o próprio Maradona vestido com a camisa dez. A música? A música não tem essa capacidade. Ao ouvir Piazzolla, a sensação que tenho é a de não passar de um turista, mordendo um alfajor Cachafaz e caminhando por Puerto Madero. O que não ocorre com Spinetta. Tentarei desenvolver isso.) 

Talvez não percebamos o quanto a Rússia, por exemplo, é incompreensível para nós, brasileiros, justamente por ela estar a mais de dez mil quilômetros de distância. Contatos entre países tão enormemente afastados dependem, sempre e necessariamente, de uma série de mediações. As diferenças são patentes demais, daí o exotismo (e seu principal subproduto, o estereótipo) se impor como o principal dos mediadores. É fácil nos iludirmos de que "conhecemos" a Rússia - basta apelamos à fácil e inevitável caricatura de vodca, alfabeto cirílico e balalaica.

A Argentina, porém, é um vizinho de porta. É próxima, sob esse e outros aspectos. Nossos idiomas são semelhantes. Luis Alberto Spinetta é um nome perfeitamente brasileiro (paulistano, ao menos). Jorge Luis Borges idem. Por que, então, essa experiência da alteridade radical, do "outro", irredutível a qualquer noção de proximidade? Uma hipótese: talvez a Argentina no fundo seja intraduzível para os próprios argentinos. E talvez o argentino saiba disso, daí sua neurose (e seu charme). (Walter Campos de Carvalho seria mais radical e diria que, a exemplo da Bulgária, a Argentina também não existe. Eu não vou tão longe assim.)

Claro que não há (nunca houve, nunca haverá) qualquer unidade sul-americana. O dueto de Fagner e Mercedes Sosa ("el tiempo pasa") só não é mais forçado do que o "encontro" de Astor Piazzolla e Tom Jobim. Charly Garcia perambulou um tempo por Copacabana, foi paparicado pelos Paralamas e acabou voltando, de mala, cuia e bigode bicolor, para sua Buenos Aires natal. Nada disso, é claro, nos impede de mirarmos, de tempos em tempos, nossos telescópios aos insondáveis universos que estão logo ali, do outro lado da divisa. Podemos descobrir coisas esplêndidas. E, em alguns casos, surpreendentemente familiares. Spinetta me soou "Clube da esquina" num primeiro momento. E num segundo também. Nenhum demérito nisso. Há semelhanças e diferenças entre ele e "nossos" mineiros.

As músicas de Spinetta são parentes (primas em primeiro grau) de "Cais", "Trem azul", "A página do relâmpago elétrico", etc. Têm o mesmo colorido harmônico, resultante do princípio de modulações modais. Mas Spinetta tem um espírito bem mais rock and roll do que seus parentes mineiros. E, ao contrário de Lô Borges e Beto Guedes, que cantam apenas razoavelmente, Spinetta é (era) um excepcional cantor. Quanto à originalidade, não creio que alguém tenha imitado alguém nessa história. Todos chegaram a resultados semelhantes trabalhando a partir de materiais que estavam no ar, fosse o ar de Buenos Aires ou de Belo Horizonte - Beatles, psicodelismo, jazz modal, etc. Quanto aos desdobramentos, os mineiros permaneceram atrelados a um jeito meio bicho-grilo de ser, diferente de Spinetta, que botou os dois pés numa espécie de século XXI já em 1983, no álbum "Mondo di cromo". (Para quem for ouvi-lo ou já o conhece, sugiro que observe o contraste entre esse álbum e o "Kamikaze", lançado apenas um ano antes. Eu costumo dizer que 1982 foi o último ano da década de 1970 e que a transição para 1983 foi meio brusca, súbita, traumática sob muitos aspectos. Esses dois álbuns do Spinetta dão testemunho disso.)

Estamos em 2023 e cada vez estou mais convencido de que a música é uma arte consumada, encerrada, que já deu o que tinha de dar. Existe entre nós um certo clima de Idade Média, em que inumeráveis artesãos das sonoridades, "anônimos do século XXI", desovam seus produtos no YouTube, com sorte são visualizados umas vinte vezes e "nada mais foi dito ou perguntado". A música com aquela ambição de ser um empreendimento fáustico, personalístico e que visava a originalidade por várias razões deixou de ser uma possibilidade. Hoje cada qual entoa o mantra e faz soar o raga que supostamente mais lhe convém. Sim, ouvir Spinetta (ou a turma do Clube da Esquina), hoje, talvez não passe de uma modesta escolha entre "ragas" supostamente mais convenientes (ragas são aquelas escalas da música clássica indiana, sempre as mesmas escalas, sempre ressoando os mesmos toiiiinnnsss, afinal as leis da física acústica são imutáveis). Sílvio Santos bem que podia ser o mestre de cerimônia desse abominável fim de festa. Qual é o raga, maestruuum? Barões da Pisadinha? Arnold Schoenberg? Ou Luis Alberto Spinetta? Em defesa desse último talvez eu só possa dizer que há escolhas piores, bem piores.

(Post scriptum: eu tenho a teoria de que os Beatles acabaram não por causa da Yoko Ono, mas por causa das musiquinhas pseudoindianas que o George Harrison se meteu a fazer a partir de 1966. Puta urucubaca aquilo, ô meu.)

(04/08/2023)