TERRA EM TRANSE, DE GLAUBER ROCHA, por Eduardo Haak

Dentre todas declarações delirantes que Glauber Rocha, 1939-1981, costumava proferir, já que ele parecia gostar do papel de trickster, faltou Glauber dizer que na verdade ele era um autor teatral elisabetano, um homem do século XVI. Na verdade não seria uma declaração delirante. Nem essa minha afirmação tem qualquer sombra de ironia. Terra em transe é teatro elisabetano até a medula óssea – os personagens, além de pesadamente “teatrais”, falam em versos brancos (uma espécie de, aliás, versos bem ruins). Seu tema, o exercício do poder e os conflitos decorrentes disso, é caro a Shakespeare, Marlowe, etc. Há também os elementos arcaicos, batucadas, cantorias em ioruba, ewá, ewá, majô, orgias, gargalhadas cínicas (de fauno de tapete, como diria Nelson Rodrigues) que completam o barroquismo atordoante oferecido ao espectador. Isso tudo rendeu num bom filme? Não, apesar da presença impactante dos atores Paulo Autran, Paulo Gracindo, José Lewgoy e, consideravelmente atrás destes, Jardel Filho. (Um monte de beldades ornamenta o filme – Danuza Leão e outras que não sei quem são, mas que são bonitas pacas.) (Aliás, nunca havia notado como Danuza e Mariana Weickert são semelhantes. Fiu-fiu pra elas.) Voltando aos apesares, apesar da fotografia inspirada de Luiz Carlos Barreto, das locações deslumbrantes no Parque Lage, dos depoimentos elogiosos de Martin Scorcese e David Byrne, apesar desses apesares todos, Terra em transe não é um bom filme. 

A boa história – quiçá a grande história – é centrada no bom personagem (quiçá grande). Jardel Filho, a despeito dos intensos esgares e dos supostos protestos de sua consciência, não passa de um pequeno canalha às voltas com grandes canalhas. Pretenso poeta, jornalista, aspone dos poderosos que estiverem mais à mão, sempre sugerindo estar com o passe à venda. Conhecemos bem o tipo. Poderia ser um bom personagem se nemesis devidamente o punisse. Mas ele termina como uma espécie de exército de um homem só, herói em stand by que oportunamente vai mostrar a que veio. (Conhecemos o tipo, também.) Raso e turvo, cheio de falsa consciência. De coisas assim que maus personagens (e maus sujeitos) são feitos. 

O brilho dos outros não chega a compensar Jardel. Lewgoy, Gracindo e Autran são calhordas em pleno exercício de suas calhordices. Mesmo que brilhantes, dramaturgicamente estão em homeostase. Gracindo é o magnata da imprensa que precisa sempre estar de bem com os poderosos. Lewgoy é o demagogo “de esquerda”. Autran é o ex-radical que hoje professa alguma bizarrice como “anarquismo cristão” (as imagens dele empunhando um crucifixo e uma bandeira preta são ótimas, deveriam estar no lugar daquela imagem do Jardel tapando a boca do pelego, que é a imagem mais conhecida do filme). Apesar do “anarquismo cristão”, Autran na verdade é chegado numa realpolitik da pesada. O povo que se exploda. Se você estende a mão a essa gente, logo vão exigir seu braço. Etc., etc. Poderia ser o personagem mais interessante do filme. Talvez seja.

Há uma ponta ou outra curiosa em Terra em transe. Flavio Migliaccio, o futuro desvalido oficial das novelas da Globo (pharmakós, bode expiatório), uma hora aparece gritando que ele na verdade é que é o povo, já que tem sete filhos e não tem onde morar. É enforcado por causa disso (no governo do demagogo “de esquerda” José Lewgoy, hem?) e, como se não bastasse, ainda enfiam o cano de uma arma em sua boca. (A arma na verdade estaciona em seus lábios, de onde pende como um cachimbo mórbido. Há, há, Flavio Migliaccio sempre se dando mal.) Clóvis Bornay fantasiado a caráter aparece na recriação da missa inaugural do Brasil, protagonizada pelo possesso Autran. Telma Reston, ainda sem os seios gigantes, aparece como favelada. Acho que o Pereio (que uma época andou dizendo que ia dinamitar o Cristo Redentor, etc.) também faz uma ponta, mas não tenho certeza.

O prestígio de Glauber, as confusões em torno dele e sua permanente encenação de gênio incompreendido foram muito deletérias para a cultura brasileira. Glauber, por exemplo, “deitou jurisprudência” para que Caetano Veloso realizasse seu péssimo filme, Cinema falado, de 1986, cinema novo pra lá de tardio. Contudo, pior do que isso é o fato de Glauber Rocha ter se consolidado como sinônimo de cinema brasileiro no imaginário coletivo. Pouco importa que não seja sinônimo de coisa alguma e que, comparado a outros cineastas, sua produção seja bastante modesta. Para não me estender demais em comparações, limito-me a compará-lo a Rogério Sganzerla, já que há afinidades estéticas entre ambos. 

Sabe-se lá por quais razões ou falta de razões, Glauber Rocha chamava o Rogério Sganzerla de menino egoísta. Pois Sganzerla fez em O bandido da luz vermelha o que Glauber foi incapaz de fazer em Terra em transe. Luz, Paulo Villaça, é um boçal assumido e J. B. da Silva, Pagano Sobrinho, põe no bolso o trio de canalhas do filme de Glauber. “No meu governo os pobres finalmente vão ter o que mascar, vou distribuir chicletes a todos”, discursa o esplêndido J. B., candidato à presidência da Boca do Lixo. Villaça não recua ante o “cumpra-se”, enquanto Jardel vaga pelo deserto (Barra da Tijuca em 1967) declamando seus flatus vocis, curtindo seu solipsismo e apontando sua metralhadora de brinquedo para o nada. O Bandido é uma sagaz, hilariante e cheia de dinamismo peça de humor negro e Terra em transe mal se aguenta nas próprias pernas por causa de todo entulho de que se constitui. Inteligibilidade é credibilidade, alguém já disse, e concordo. Saímos de Terra em transe atordoados, emacumbados, e saímos de O bandido gargalhando e dizendo yeah. Vocês que escolham que filme vão ver.

(21/08/2023)