LUIS ALBERTO SPINETTA, por Eduardo Haak

Luis Alberto Spinetta, que viveu de 1950 a 2012 num universo paralelo chamado República Argentina, tinha aquela elegância tipicamente ectomorfa que o Stewart Copeland, baterista do The Police, também tem. (Os dois, aliás, são bastante parecidos.) Spinetta era cantor, compositor, guitarrista. Sua obra é deslumbrante. Não o conhecia até poucos dias atrás e desde então venho tentando entender por que um artista tão notável é (e vai continuar a ser) rigorosamente desconhecido no Brasil.

Quando vi pela primeira vez o álbum das Mercenárias que exibe uma cédula de quinhentos pesos argentinos na capa ("Cadê as armas?, lançado em 1986) tive aquela sensação que nos ocorre sempre que nos deparamos com algum símbolo que expressa uma verdade que nem sempre, num primeiro instante, conseguimos verbalizar. "É isso!", pensamos quando coisas assim acontecem. Mas "é isso" exatamente o quê? Um símbolo, como bem disse Olavo K. Langer, é uma matriz de intelecções. Não é propriamente isso ou aquilo. Disso - do símbolo - partimos em direção de algo. Algo ainda ignorado e não sabido.

A sensação de que uma nota de quinhentos pesos é uma imagem perfeita para um disco de uma banda brasileira chamada As Mercenárias, para além das suspeitas iniciais de uma simples e corriqueira provocação bairrista, tem a ver na verdade com a experiência de estranhamento que sempre, de uma maneira ou de outra, temos ao nos depararmos com qualquer coisa que venha da Argentina. Para o brasileiro, o argentino é o estrangeiro absoluto. E isso não tem a ver com qualquer tipo de birra, má-vontade ou preconceito. Parece mais uma lei, se não ontológica, ao menos psicológica.

Fazendo uma analogia com o "nada mais antigo que o passado recente" de Nelson Rodrigues, talvez nada seja mais longínquo do que aquilo que é relativamente próximo. Às vezes parece que do outro lado da fronteira - não qualquer fronteira, mas precisamente aquela que separa Foz do Iguaçu de Puerto Iguazú - não existe propriamente um país, mas uma galáxia a bilhões de anos-luz. 

A verdade é que os países (todos os países) se traduzem uns para os outros de modo precário, sempre. (Exceto por meio da literatura. Enquanto leio Borges não tenho dúvida de que me torno mais argentino do que o próprio Maradona vestido com a camisa dez. A música? A música não tem essa capacidade. Ao ouvir Piazzolla, a sensação que tenho é a de não passar de um turista, mordendo um alfajor Cachafaz e caminhando por Puerto Madero. O que não ocorre com Spinetta. Tentarei desenvolver isso.) 

Talvez não percebamos o quanto a Rússia, por exemplo, é incompreensível para nós, brasileiros, justamente por ela estar a mais de dez mil quilômetros de distância. Contatos entre países tão enormemente afastados dependem, sempre e necessariamente, de uma série de mediações. As diferenças são patentes demais, daí o exotismo (e seu principal subproduto, o estereótipo) se impor como o principal dos mediadores. É fácil nos iludirmos de que "conhecemos" a Rússia - basta apelamos à fácil e inevitável caricatura de vodca, alfabeto cirílico e balalaica.

A Argentina, porém, é um vizinho de porta. É próxima, sob esse e outros aspectos. Nossos idiomas são semelhantes. Luis Alberto Spinetta é um nome perfeitamente brasileiro (paulistano, ao menos). Jorge Luis Borges idem. Por que, então, essa experiência da alteridade radical, do "outro", irredutível a qualquer noção de proximidade? Uma hipótese: talvez a Argentina no fundo seja intraduzível para os próprios argentinos. E talvez o argentino saiba disso, daí sua neurose (e seu charme). (Walter Campos de Carvalho seria mais radical e diria que, a exemplo da Bulgária, a Argentina também não existe. Eu não vou tão longe assim.)

Claro que não há (nunca houve, nunca haverá) qualquer unidade sul-americana. O dueto de Fagner e Mercedes Sosa ("el tiempo pasa") só não é mais forçado do que o "encontro" de Astor Piazzolla e Tom Jobim. Charly Garcia perambulou um tempo por Copacabana, foi paparicado pelos Paralamas e acabou voltando, de mala, cuia e bigode bicolor, para sua Buenos Aires natal. Nada disso, é claro, nos impede de mirarmos, de tempos em tempos, nossos telescópios aos insondáveis universos que estão logo ali, do outro lado da divisa. Podemos descobrir coisas esplêndidas. E, em alguns casos, surpreendentemente familiares. Spinetta me soou "Clube da esquina" num primeiro momento. E num segundo também. Nenhum demérito nisso. Há semelhanças e diferenças entre ele e "nossos" mineiros.

As músicas de Spinetta são parentes (primas em primeiro grau) de "Cais", "Trem azul", "A página do relâmpago elétrico", etc. Têm o mesmo colorido harmônico, resultante do princípio de modulações modais. Mas Spinetta tem um espírito bem mais rock and roll do que seus parentes mineiros. E, ao contrário de Lô Borges e Beto Guedes, que cantam apenas razoavelmente, Spinetta é (era) um excepcional cantor. Quanto à originalidade, não creio que alguém tenha imitado alguém nessa história. Todos chegaram a resultados semelhantes trabalhando a partir de materiais que estavam no ar, fosse o ar de Buenos Aires ou de Belo Horizonte - Beatles, psicodelismo, jazz modal, etc. Quanto aos desdobramentos, os mineiros permaneceram atrelados a um jeito meio bicho-grilo de ser, diferente de Spinetta, que botou os dois pés numa espécie de século XXI já em 1983, no álbum "Mondo di cromo". (Para quem for ouvi-lo ou já o conhece, sugiro que observe o contraste entre esse álbum e o "Kamikaze", lançado apenas um ano antes. Eu costumo dizer que 1982 foi o último ano da década de 1970 e que a transição para 1983 foi meio brusca, súbita, traumática sob muitos aspectos. Esses dois álbuns do Spinetta dão testemunho disso.)

Estamos em 2023 e cada vez estou mais convencido de que a música é uma arte consumada, encerrada, que já deu o que tinha de dar. Existe entre nós um certo clima de Idade Média, em que inumeráveis artesãos das sonoridades, "anônimos do século XXI", desovam seus produtos no YouTube, com sorte são visualizados umas vinte vezes e "nada mais foi dito ou perguntado". A música com aquela ambição de ser um empreendimento fáustico, personalístico e que visava a originalidade por várias razões deixou de ser uma possibilidade. Hoje cada qual entoa o mantra e faz soar o raga que supostamente mais lhe convém. Sim, ouvir Spinetta (ou a turma do Clube da Esquina), hoje, talvez não passe de uma modesta escolha entre "ragas" supostamente mais convenientes (ragas são aquelas escalas da música clássica indiana, sempre as mesmas escalas, sempre ressoando os mesmos toiiiinnnsss, afinal as leis da física acústica são imutáveis). Sílvio Santos bem que podia ser o mestre de cerimônia desse abominável fim de festa. Qual é o raga, maestruuum? Barões da Pisadinha? Arnold Schoenberg? Ou Luis Alberto Spinetta? Em defesa desse último talvez eu só possa dizer que há escolhas piores, bem piores.

(Post scriptum: eu tenho a teoria de que os Beatles acabaram não por causa da Yoko Ono, mas por causa das musiquinhas pseudoindianas que o George Harrison se meteu a fazer a partir de 1966. Puta urucubaca aquilo, ô meu.)

(04/08/2023)