ALÔ, ALÔ, CHAMANDO, por Eduardo Haak

PORTNOY Não me lembrava que Portnoy’s complaint termina com um quase estupro (para a sensibilidade contemporânea, etc.), que só não se consuma porque o caramuru de Alex dá chabu. Ri muito em várias partes do livro, como na parte em que ele, Alex, fala sobre a “legítima privada goyische” onde o pai de sua namorada, a Abóbora de Davenport, Iowa, dá suas cagadas gentias.

FILME PSEUDOIRANIANO Gostei muito do filme pseudoiraniano A girl walks home alone at night, USA, 2014, direção de Ana Lily Amirpour. Vampira que anda de skate (de skate e com aquelas roupas pretas que os aiatolás obrigam as mulheres a usarem no Irã) sai por aí estraçalhando as carótidas de homens maus, misóginos, etc. Quem não vê ironia nesse enunciado, que desdefine, pelo exagero quase caricatural, cinema iraniano e feminismo, é mulher do padre. A atriz que faz a vampira, Sheila Vand, é tremendamente bonita e, ao que parece, é uma boa atriz. Lembra a Lilian Lemmertz. Imagino o estrago que Walter Hugo Khouri faria dirigindo a moça.

MOVIDO A ÁLCOOL SÓ O MOTORISTA Era um adesivo que os engraçadinhos colavam no vidro do carro lá por 1982, porque os carros a álcool (hoje etanol) eram então obrigados a ter um selo colado no vidro, Movido a álcool, coisa do governo para tirar dinheiro do, sei-bem, contribuinte. (Aliás, alguém se lembra daquela macaquice de ficar buzinando nos túneis da Imigrantes, só de zoeira?)

ACHEI O DISCO QUE PROCURAVA HÁ ANOS, ETC. É (ou era) um adesivinho em formato de guitarra que era colado nas capas dos discos da loja Eric Discos, Rua Arthur de Azevedo, Pinheiros, São Paulo. Duas outras músicas que levei décadas para saber o nome, autor, intérprete, etc.: Flying vegetables of the apocalypse, de Guy Klucevsek, e Is it o.k. if I call you mine?, de Paul McCrane. A do Klucevsek eu ouvi uma vez, em algum momento dos anos 1990, na Cultura FM, 103,3. Ouvindo trinta anos depois, pareceu-me uma peça minimalista meio mal ajambrada, de alguém que não é do ramo. A canção do Paul McCrane eu achava, sei lá por que, que era da trilha sonora de Garota do adeus ou da trilha sonora de Mulher descasada. Na verdade é da trilha de Fame. (E dá-lhe velharias.) Não é ruim, a música do McCrane, mas logo dá no saco a coisa choramingas do sujeito feioso pedindo licença para chamar de sua a fulaninha, etc. (Uma vez escrevi um e-mail para a Cultura FM perguntando o nome da música usada como vinheta pela estação, etc. Os comunistas safados não me responderam. Acabei descobrindo por acaso que era Lollapalooza, de John Adams.)

PORNOGRAFIA Vi uma vez um debate de uma atriz pornô com um sujeito que questionava alguns aspectos da escolha profissional da moça, etc. Uma hora ele disse: se você se deixa ser filmada com uma vela enfiada no cu, não poderá dizer, daqui a vinte anos, que fez papel de bolo de aniversário no filme.

(Emoticon de risos.)

ALBERTA#3 Fui uma única vez ao Alberta#3, bar na Avenida São Luís que, soube agora, morreu de covid, lockdowns, etc. Foi em 2017. Passei lá para matar o tempo antes de ir a um lançamento de livro, Roberto Bicelli, Antes que eu me esqueça, versão revisada e ampliada, 2017. O lançamento foi na livraria Tapera Taperá, Galeria Metrópole. Descubro também que uma casa noturna que hoje existe na Vila Olímpia começou em 2006 no Conjunto Zarvos, ao lado do Alberta#3. O Centro viveu um breve momento de aparente revitalização na década passada, mas a brincadeira durou pouco, logo vieram os assaltos, etc. Hoje só dá pra passar por lá de carro blindado ou de – boa pedida? – tanque Merkava israelense.

Buuuum!

(E aquela cascata de que o Kiss havia comprado o tanque de guerra sobre o qual a bateria do Eric Carr era montada – um “tanque de guerra” feito de cartolina e papel alumínio – do próprio exército americano? Éramos tão caipiras em 1983 que caímos até nessa.)

(Procurem no Youtube Antes que eu me esqueça, curta metragem que Jairo Ferreira rodou em 1977 no primeiro lançamento do livro do Bicelli. Entre outras curiosidades, vemos um adolescente chamado Eduardo Giannetti da Fonseca – pai do Joel Pinheiro – lendo uns poemas, etc.)

03/12/2023

O AVESSO DA VIDA, DE PHILIP ROTH, por Eduardo Haak

Você tem trinta e nove anos, é alto, moreno, atlético, boa pinta. Você, não só como também, é um dentista bem reputado. É casado e tem três filhos. Tem amante, é claro. Sua amante é sua assistente no consultório, a quem você se refere como “Boca”, por causa de suas, hum, habilidades orais. Num check-up de rotina você, que se chama Henry Zuckerman, descobre que está com um problema cardíaco, umas obstruções, etc. Como o ano é 1978, ainda não há stents. Ou você se trata com betabloqueador, ou se aventura numa ainda arriscadíssima cirurgia de ponte de safena. Você experimenta o betabloqueador, mas o medicamento te deixa impotente. Você se desespera. Passa a surrar eventualmente sua amante. Resolve, então, entrar na faca, mas morre na mesa de cirurgia.

Aquilo que acontece não pode desacontecer, etc. Mas estamos no reino da ficção, onde todas as possibilidades do real podem ser testadas, sem que uma contradiga a outra. Possibilidades, no plural. Na primeira, você faz a cirurgia e morre. (Sua mulher, Carol, discursando no velório, afirmou que você fez a cirurgia por ela, em nome da plenitude do amor conjugal, etc. Talvez desconfiasse da “Boca” e resolveu marcar território, mesmo depois de você morto.) Na segunda, você sobrevive à cirurgia, mas passa por uma metanoia (ou colapso nervoso) que acaba te levando para Israel, onde você se torna uma espécie de discípulo de um sionista radical chamado Mordecai Lippman e vai morar num colonato em Hebron, Cisjordânia, deixando para trás mulher, filhos, “Boca”, consultório elegante em Upper East Side, etc. Seu irmão, Nathan Zuckerman, com quem você está rompido desde que ele publicou um livro chamado Carnovsky, livro em que os judeus em geral e a comunidade judaica de Newark, New Jersey, em particular (e a família Zuckerman mais particularmente ainda) é tratada de forma jocosa, seu irmão Nathan foi atrás de você para interrogá-lo sobre essa coisa de morar num assentamento em Hebron, andar armado, aprender hebraico depois de velho, etc.

Na terceira “possibilidade do real” quem teve o problema cardíaco, ficou impotente, resolveu ser safenado e morreu na cirurgia foi Nathan, o tal escritor que demonstrou não ter nenhum esprit de corps em relação à judeuzada de Newark, etc. (Há analogias entre Nathan Zuckerman e seu Carnovsky e Philip Roth e Portnoy’s complaint. Roth também foi acusado de fornecer farta munição para os antissemitas.) Henry, seu irmão, depois do velório vai sorrateiramente ao apartamento de Nathan e descobre que Nathan estava escrevendo um livro cheio de indiscrições sobre o caso que Henry vinha tendo com sua assistente. Surrupia todas as páginas com as tais indiscrições, etc. Ofende-se mais uma vez com a convicção central de Nathan, sua cláusula pétrea, convicção de que as pessoas comuns não passam de personagens literários pouco amadurecidos à espera de um escritor que lhes dê plenitude. E, se as pessoas comuns não passam de idiotas à espera de um escritor que exponha sua idiotice, que assim seja. (Essa discussão moral de “quem representa os verdadeiros valores da vida” perpassa a obra de Roth. O pêndulo sempre está oscilando, ora para os observadores debochados dessa criatura patética, o ser humano (por acaso judeu), ora para o outro lado, pessoas decentes, trabalhadeiras, abnegadas, que se perguntam se é justo que pessoas decentes, trabalhadeiras, etc., sejam tratadas na base do chicote por um escritor sádico, narcisista, sem qualquer senso de responsabilidade ou moralidade, que sacrifica tudo pela piada, de preferência antissemita. Até onde li Philip Roth, seu livro que mais advoga o lado dos humanos-por-acaso-judeus trabalhadores, decentes, abnegados, etc. é Pastoral americana. Um livro, como não poderia deixar de ser, bastante chato.)

Noutra “possibilidade do real” Nathan está impotente e se apaixona por uma vizinha recém-mudada para o prédio, inglesa, casada com um figurão do serviço diplomático. A mulher se chama Maria. Os dois têm um caso sem sexo, mas com muita conversa. (Maria é inteligente e loquaz, mas não demora muito a se mostrar convencional, enfadonha, etc. Talvez toda mulher, a despeito de seu brilho eventual e das cinco ou seis palavras sacadas do léxico feminista que ela use em profusão, esteja mesmo destinada a terminar bordando seu paninhos de prato e discutindo o preço das cortinas novas.) Nathan propõe que Maria se separe do marido e se case com ele. Aos quarenta e cinco anos e, no entender dele, feminilizado pela impotência, Nathan passou a acalentar a ideia de ter um bebê. Fará a cirurgia arriscada, etc. Maria, não sem hesitar, acaba rejeitando a proposta de Nathan.

Noutra, “possibilidade do real”, Maria se separou do figurão do serviço diplomático e engravidou de Nathan, o safenado. Precisarão se estabelecer na Inglaterra, por causa de um termo do divórcio com o figurão, etc. Vão a Gloucestershire para que Nathan conheça a sogra e as cunhadas. Elas são esnobes e provincianas, e há, sim, algo de antissemita nelas, mas Nathan exagera na reação. Tudo na Inglaterra lhe parece um dedo acusador lhe apontando e dizendo judeu judeu judeu. (Woody Allen em Annie Hall falando do vendedor da loja de discos lhe dizendo que os discos de Richard Wagner estavam em oferta, etc., etc.) A paranoia escrutinadora de Nathan acaba levando Maria a dizer coisas que causam um estrago irreparável na relação deles. Interrogada, ela diz que, sim, não gosta de ir a Highgate e Hampstead, bairros de Londres com forte presença da comunidade judaica, porque não gosta de se sentir uma estrangeira em seu próprio país.

O livro termina epistolarmente, Nathan cá, Maria lá, tudo é ficção, nada é ficção. Você, leitor, está com um monte de impressões boiando em sua mente. Há algo de insatisfatório nessa coisa de realidades alternativas que se sobrepõe e se contradizem sem se contradizer. (Chispa, Eudes, isso não é assunto pra mocorongos.) Todas resvalam para a mesma vala comum de projetos existenciais antes abortados do que fracassados, abortados por desinteresse e exaustão. (O pós-modernismo, etc., etc.) Mordecai Lippman, o sionista radical, mereceria um percurso dramático completo, não a breve cintilação seguida do arbitrário abandono. Idem os outros personagens. O avesso da vida, Counterlife, publicado em 1986, reforça a impressão de que Philip Roth escreveu uma única obra-prima, Portnoy’s complaint, e escreveu outros trinta livros (uns melhores, outros piores) para desconversar o Portnoy. (Leiam o Portnoy, mas na edição antiga, da Abril. A tradução atual, de Paulo Henriques Britto, eliminou uma série de achados sensacionais e hilários da tradução anterior, como atrevidona e Maricas da Palestina.)

 

26/11/2023 


ALÔ, ALÔ, CHAMANDO, por Eduardo Haak

OPERAÇÃO SHYLOCK É um romance de Philip Roth lançado nos anos 1990. Comprei meu exemplar num sebo em 2001 e o li na ocasião. (Emprestei-o para uma quase namorada, judia sefaradita, em 2006, e a moça não me devolveu.) O personagem principal de Operação Shylock é um sósia perfeito de Philip Roth que, fazendo se passar por Roth, andava pregando em Israel o diasporismo, a volta dos judeus para a Europa. Numa cena particularmente hilária, o falso Roth diz para o verdadeiro que os poloneses iriam chorar de alegria quando os judeus começassem a chegar de trem à Polônia. Ajoelhados na plataforma da estação, bradariam eufóricos, “os nossos judeus voltaram!”. Outro personagem curioso é um judeu ortodoxo, obeso e sórdido como um Nero de Cecil B. de Mille, que trabalhava como advogado em Ramallah para palestinos acusados de crimes contra a segurança do estado israelense. Ao questionar o porquê daquela situação inusitada, Roth fica sabendo que os palestinos só confiavam em advogados judeus, sujeitos que, se quisessem, foderiam de vez com a vida deles. Etc., etc.

O CEMITÉRIO DE PRAGA É um romance de Umberto Eco, acho que o último dele, que conta a história (ficcional) do falsário que forjou Os protocolos dos sábios do Sião. Os protocolos etc. é a suposta ata de uma reunião de rabinos feita na calada da noite no Cemitério Judaico de Praga em que se decidiu o modo como os judeus dominariam o mundo, as finanças, etc. Serviu para botar lenha na fornalha do antissemitismo no século XX, apesar de ser comprovadamente falso. (Tem uma história mais curiosa sobre rabinos reunidos à noite em cemitérios. Em 2005 foi noticiado que um grupo de rabinos havia se reunido à noite num cemitério no norte de Israel para praticar um ritual de magia negra chamado pulsa denura, pedindo a morte do então primeiro-ministro Ariel Sharon, que havia decidido pela retirada israelense de Gaza. Yo no creo en brujas, pero pouco tempo depois Sharon teve um AVC e ficou em estado vegetativo por oito anos, até que morreu, em 2014.)

É ISTO UM HOMEM? Primo Levi dividindo a cama com um sujeito em Auschwitz, o sujeito vai fazer as necessidades, volta com os pés sujos de fezes, se deita na cama, Levi tem de dormir com os pés do sujeito perto de sua cara, etc. 

AS LOUCAS AVENTURAS DE RABBI JACOB É uma comédia francesa de 1973 protagonizada por Louis de Funès. Funès faz um francês meio esquentado, meio xenófobo, meio antissemita, que numa peripécia maluca típica de certas comédias acaba tendo de empreender uma fuga disfarçado de rabino. (Para os nervosinhos lacradores de plantão já adianto que o filme tem até black face, numa cena em que Funès mostra-se indignado ao ver um casamento inter-racial e o escapamento de um carro joga um monte de fuligem no rosto dele.) O que é delicioso nesse filme é que tudo – judeus, árabes, negros, franceses xenófobos,  etc. – se acomoda num grande, irônico e espetacular rito de integração final.

ISAAC BABEL Antes de ter um caso com uma mulher casada com um figurão da NKVD e acabar sendo expurgado-fuzilado a mando de Stalin, Isaac Babel escreveu um monte contos extraordinários, boa parte deles descrevendo a vida dos judeus no semigueto que então era Odessa. Destaque para o fantástico Benya Krik, espécie de Don Corleone asquenazi, herói e anti-herói, ambíguo e cheio de gradações de cinza, porque preto-ou-branco é coisa de Greta Thunberg, que pelo jeito vai ganhar o Prêmio Wandinha Adams de azedume pelo décimo ano consecutivo.

SAUL BELLOW Inesquecível o velho Arthur Sammler, sobrevivente do holocausto, etc.,  estalqueando um dândi afroamericano – casaco de couro de camelo, óculos redondos Christian Dior com lentes violeta, etc. – que batia carteiras num ônibus no Brooklyn, Nova York. O dândi, quando percebe, segue Art, o encurrala num beco, abaixa as calças e lhe mostra algo digno de concorrer com John Holmes e Long Dong Silver. Vita brevis, ars longa.  

Etc., etc.

 

16/11/2023


ALÔ, ALÔ, CHAMANDO, por Eduardo Haak

NON DUCOR DUCO Fui ao Sebo do Messias (“deixai vir a mim os bibliófilos”) semana passada comprar O informe de Brodie, único livro de contos de Jorge Luis Borges que ainda não havia lido. Depois fui dar uma volta pelo Centro. Desci a Rua Direita, entrei no Viaduto do Chá, atravessei a Barão de Itapetininga, virei na Ipiranga e depois na São Luís. O Centro está melhor, depois da devastação provocada por covid, lockdowns, etc. Segui até o Conjunto Zarvos, onde Walter Hugo Khouri rodou uma cena de Noite vazia. Descobri que o lugar está tombado desde 1992. 

PALÁCIO DOS CEDROS A casa fica no Ipiranga e pertenceu à família Jafet (sim, da avenida dos motéis). Hoje é um buffet, festas de casamento,  debutante, etc. O Eudes (“os colega da firrrma”) e a Rose quando casarem vão fazer a festa lá. Dizem que o lugar “parece de conto de fadas” (Rose) e é interessante do ponto de vista “histórico” (Eudes). Sim, de fato, histórico. O famigerado “filme da Xuxa”, Amor estranho amor, Walter Hugo Khouri, 1982, foi rodado no Palácio dos Cedros.

CNN Acompanhando noticiários na CNN Brasil, a guerra, etc. Quase todos entrevistados com um português capenga. “Houveram”, verbo impessoal que fica, portanto, no singular, é cometido por quase todos. Para além de erros gramaticais, as frases ditas são mal ajambradas, o vocabulário é impróprio, muitas apropriações do inglês que não funcionam em português, etc. Fica óbvio que essa gente nunca leu um livro que preste na vida. Se é que leram algum livro. (Tive uma, hum, namorada que lia meia página de Norah Robberts por semana. E o pior é que ela nem era propriamente bonita, pra compensar.) 

BRASIL 247 Ouvir o Pepe Escobar me dá a mesma sensação que tenho ao ler uma prodigiosa e ultrafarsesca página de Thomas Pynchon. Eu digiro bem a coisa e até que curto. Mas gente com a cabeça fraca, sugestionável, não devia chegar perto do elemento. 

CRENTE DO RABO QUENTE Fulana vem fazendo vídeos de “conteúdo adulto” e seu filho, de dezenove anos, é quem filma. Imagina a sequência de crônicas extraordinárias que o Nelson Rodrigues escreveria a respeito. 

MARIO FOFOCA Vejo no Dailymotion um episódio do seriado Mario Fofoca, que a Globo produziu em 1983 e que foi um fracasso, ao contrário da novela de onde saiu o personagem, Elas por elas, exibida no ano anterior. A ruindade do episódio, chamado Vista chinesa, talvez explique o fracasso.

IBRAHIM SUED TROCA MÃE POR FAIXA DE GAZE As coisas não andam moleza nos arredores da Rua 25 de março, ô meus. É bombardeio todo dia. Segundo apurei, eu, Adoniram Baboseira, o repórter, os caras querem pegar o Ibrahim Sued, que se escondeu num túnel por ali depois de ter vendido a própria mãe no site OLX. Oras, nenhum problema em vender a própria mãe na OLX, mas Sued vendeu e não entregou. O Procon e o Conselho de Segurança da Yoko Ono farão uma reunião de emergência no próximo sábado para discutir o caso extraconjugal. Vai um chopps e dois quibe cru aí?

NOW AND THEN A eterna expectativa com a volta dos Beatles tem algo da eterna expectativa dos cristãos com a volta de Jesus, não é mesmo? Pois bem. Enquanto os Beatles não voltarem (e reinarem por mil anos, etc.), os fãs-fiéis terão de se dar por satisfeitos com os simulacros. (“Raspas e restos me interessam”, como disse o Agenor.) Now and then é um esboço de canção, apenas mediana, escrita e gravada em demo por Lennon em 1979. O resultado da junção da voz de John, isolada e melhorada com IA, a guitarra de George, gravada em 1995,  Paul e Ringo em 2023, não é propriamente empolgante.
 

06/11/2023

ALÔ, ALÔ, CHAMANDO, por Eduardo Haak

BETTER WATCH OUT CAUSE I’M WAR MACHINE Gene Simmons, Kiss, nasceu em Haifa, Israel. Hillel Slovak, do Red Hot Chilli Peppers, também. Consigo imaginar sem dificuldade Hillel como tenente das IDF e Gene (aliás, Chaim Witz) como coronel. 

SEM OLHOS EM GAZA É o título de um livro do Aldous Huxley, que não li e não vou ler, não gosto de Aldous Huxley. Refere-se ao episódio bíblico em que os filisteus cegam Sansão e o levam cativo para Gaza, então ele abraça as colunas do templo e diz, “que eu morra com os filisteus”, etc.

O SOM E O SILÊNCIO A onda sonora é formada por um sinal que se apresenta e por uma ausência que pontua a apresentação desse sinal. 

DX-7 Sempre achei ridículo o som do Yamaha DX-7. A síntese por frequência modulada, que trabalha apenas com ondas senoidais, relacionando frequência portadora e frequência moduladora, é intrinsecamente ruim e invariavelmente gera aquele timbre blin-blin-blin desse famigerado instrumento musical. 

MÚSICAS QUE DEMOREI DÉCADAS PARA DESCOBRIR DE QUEM ERA Rise, do Herb Alpert. Se você quer ser mergulhado imediatamente num clima de lascívia safra 1979, ouça essa música. Rise foi usada e abusada como vinheta de propagandas de motel em idos tempos, mas nunca perdeu o élan. Ela aparece até no filme Liliam, a suja, Antonio Meliande, 1981, numa cena em que a loirona psicopata está com o horrendo Roque Rodrigues num – onde?, onde? – motel.

SPINETTA Provavelmente Mondo di cromo, 1983, não é o melhor álbum de Luís Alberto Spinetta, mas talvez seja o de que eu mais goste. Adoro o clima do disco e duas faixas dele, Yo quiero ver un tren e Días de silencio, estão entre as minhas preferidas de El Flaco. Acho o clima do Mondo parecido com o clima do filme O sonho não acabou, Sérgio Rezende, 1982. Imagino-me namorando a Louise Cardoso, a gente rodando de madrugada por Brasília, aí vamos à torre de TV, eu engraxo (suborno) o vigia noturno, José Dumont, com um Castelo (5000 cruzeiros), aí subimos ao mirante e ficamos lá, namorando, ouvindo no walkman Mondo di cromo e esperando o sol aparecer.

ETHOS Acho uma praga essa mania metonímica de “meu médico”, “meu mecânico”, etc. Uma vez estava tomando café com uma distinta senhorita, então ela pegou o celular e disse, “um minutinho que preciso falar com meu traficante”. Etc., etc. Pensando bem, essa mania vem desde o tempo do onça. Lembrei-me de um artigo do Paulo Francis, ele dizendo que havia encomendado com “seu contrabandista” uns pacotes de Marlboro americano e um disco do Bob Dylan. (O que tem Lay, lady, lay, não sei qual é, sempre caguei pro Bob Dylan.) Sim, todo brasileiro até uns vinte anos atrás tinha “seu contrabandista”. Em 1986, quando o videocassete invadiu massivamente os lares brasileiros, todo mundo comprou com “seu contrabandista” o Panasonic G-9. O aparelho tinha de ser submetido a uma gambiarra tosca chamada transcodificação, de NTSC para PAL-M, e, claro, perdia qualidade consideravelmente no processo. 

PIADA VELHA A diferença entre x e y é que ambos vendem a mãe, mas x vende e não entrega.


20/10/2023


UM TREM PARA AS ESTRELAS, DE CARLOS DIEGUES, por Eduardo Haak

Ver Um trem para as estrelas, Carlos Diegues, 1987, passados trinta e quatro anos dá aquela espécie de prazer que experimentamos ao contemplarmos, hoje, uma antiga catástrofe da qual, por alguma misteriosa razão, escapamos ilesos. Sim, como pudemos sobreviver ao final dos anos 1980 é uma questão em aberto. A década foi como uma daquelas festas que começam muito bem (1982, 83, no máximo 1984), mas que lá pelas tantas desandam – uma festa para a qual todos julgávamos possuir a senha de acesso, “hoje a festa é sua, hoje a festa é nossa, é de quem quiser, quem vier”, como dizia aquela musiquinha de final de ano da Globo; contudo, não tardamos a descobrir, nós, os supostos possuidores da suposta senha de acesso, que aquela coisa de “quem quiser, quem vier” não passava de uma filosofia inclusiva de araque. A saber: Scarlet Moon de Chevalier deixou de frequentar o píer de Ipanema quando este foi tomado pelo “craudinor” (crowd, multidão). O Asdrúbal Trouxe o Trombone implodiu quando, num fenômeno hiperinflacionário típico daquele tempo, já andava contabilizando perto de trezentos “membros”. A produção brasileira de instrumentos musicais viveu um de seus maiores booms logo após o Rock in Rio, 1985, não deixando desprovidos dos suprimentos necessários os cinquenta mil novos aspirantes a bateristas, baixistas e guitarristas que surgiam por mês (ou por semana) no período. Todo mundo querendo ser artista, levar a vida na flauta, etc. E por aí vai. Contrariando Carlos Marx (“tradução de Nelson Rodrigues”), a(s) história(s) não necessariamente se repete(m) como farsa. Qualquer pessoa que já viveu algumas décadas sabe disso perfeitamente bem.

Apesar de eu apontar nessa abertura que Um trem para as estrelas provavelmente apresenta mais interesse, visto em 2021, para coroas saudosistas a fim de curtir uma onda nostálgica, dado que o tempo que decorreu desde sua realização o transformou num notável retrato de época, não deixo de acreditar que o filme possa interessar aos mais jovens, aos que não têm referências pessoais daquele tempo. Nem tudo no filme é datado – e nem tudo que é datado (nesse ou em qualquer outro filme) é necessariamente perecível. Desde que o mundo é mundo o permanente e o transitório vivem numa tensão dialética irresolvida (e irresolvível). Heráclito e Parmênides gastaram muita saliva nessa discussão sem sair do impasse-empate. (A coisa é mesmo uma espécie de Fla-Flu desde a Grécia Antiga, Clube de Regatas Parmênides versus Heráclito Football Club, zero a zero, dois mil e quatrocentos anos do segundo tempo.) No mais, não poucas pessoas confessam sentir saudade de épocas que elas não viveram. O fetichismo por objetos vintage é um fato mais do que observado. E por trás desse fetichismo sem dúvida está nosso pacto civilizacional, o acordo entre os mortos (passado), os vivos (presente) e os que ainda vão nascer (futuro). Só mesmo uma pessoa dotada de um grau muito patológico de provincianismo temporal seria incapaz de compreender um mundo desprovido de WhatsApp e com carros funcionando com um treco chamado carburador.

Pois bem. Estamos no Rio de Janeiro, segunda metade dos anos 1980. “Rio de Janeiro” pode induzir o leitor ao equívoco de pensar imediatamente em joie de vivre, praia, sol. Não, nada disso. Estamos num Rio noir, quase blade-runneriano. Numa feliz e notável escolha de direção, Diegues não mostra nenhuma vez no filme qualquer paisagem clichê da Cidade Maravilhosa. Helicópteros sobrevoam cemitérios de carros, aglomerados de prédios comerciais recortam a linha do horizonte – a paisagem parece um pouco a de Los Angeles Downtown vista a distância. Estamos, em suma, num Rio sem praia, sem Garota de Ipanema, sem o consolo e as compensações do belo. Vina, Vinícius, Guilherme Fontes, é um jovem saxofonista que vive entre uma gig e outra (ora acompanha Cazuza, ora Fausto Fawcett, etc.). Tudo o que herdou do pai, já morto, foi um sax tenor e uma pilha de estropiados discos de jazz. Mal vê a mãe, Camila, Betty Faria, que é dançarina do show “As Mimosas Eróticas”. Mora com um tio, técnico de rádio e TV (“Instituto Universal Brasileiro”), num mostrengo modernista plantado no subúrbio, Guadalupe, espécie de versão carioca do Gropiusstadt berlinense, lar de Christiane F., etc. Namora Nicinha, Eunice, Ana Beatriz Wiltgen, garota bonitinha com ar inocente que trabalha como vendedora numa loja de surf. De um dia para o outro Nicinha some, não aparece mais no emprego, etc. Vina vai à polícia e narra o ocorrido. O delegado Freitas, Milton Gonçalves, se interessa bastante pela história de Vina, o Orfeu do sax, e não dá mais sossego para ele.

A trama de Um trem para as estrelas alude remotamente ao mito de Orfeu e Eurídice, o jovem tocador de lira que vai ao mundo dos mortos resgatar de lá sua amada, etc. Remotamente, sim, porque Vina praticamente nada tem de Orfeu. Interessa-se por Nicinha apenas como espectadora de seus arroubos narcisistas. Nicinha, se é que já foi apaixonada por Vina, no momento não é mais. Vina nem percebe, hipnotizado pela própria discurseira solipsista e pelo som do próprio sax. Daí que a busca que ele empreende a partir daí parecer meio duvidosa. Vina ora parece aflito, ora entediado ao tentar esclarecer o sumiço da moça. No fundo preferiria deixar o assunto pra lá, mas o delegado, que intimamente aposta na não inocência de Vina no caso, está determinado a tirar a história a limpo, “Você não deve nada, não, né, garoto? Pensa bem. Todo mundo tem um esqueleto guardado no armário”.

No périplo a que se lança meio a contragosto Vinícius-Vina se deparará com uma sequência de impressionantes criaturas em seus instantes de minúsculas (ou imensas, impossível decidir) fulgurações, todos habitantes de um universo que aparentemente deixou de ter qualquer integridade e  inteligibilidade: Zé Trindade, pai de Nicinha, que passa os dias sentado num dos elevadores do Edifício Paulo de Frontin, bebendo suas cervejas e fazendo suas cantorias (a cena parece cômica, uma típica situação de chanchada, mas no contexto expressa apenas desespero e horror); Miriam Pires, mãe de Nicinha, uma velha histérica viciada em TV cuja presença cênica, soberba e horripilante, evoca a aparição da mãe-caveira de Norman Bates em Psycho, Alfred Hitchcock, 1960; José Wilker, um jornalista bêbado que, em avançado estado de embriaguez, fica pedindo insistentemente ao “maestro” que toque Blue moon, isso durante um show do Fausto Fawcett e os Robôs Efêmeros, num bar todo decorado com néon e mobiliário em estilo Memphis (Wilker, claro, é ignorado, e Fausto prossegue narrando a história da sereia silicone copacabanense que vive despejando purpurina nas macumbas mofadas); Daniel Filho, também jornalista, jornalismo popular, id est, marrom, sensacionalista, fazendo praticamente o mesmo papel que fez em Beijo no asfalto, Bruno Barreto, 1981, o de Amado Ribeiro, o jornalista mais cafajeste da face da Terra; Betty Prado, uma beldade meio maluca que dirige um Ford Escort XR-3 conversível e que curte levar umas bofetadas durante o sexo; um drogado morador de rua que explica para Vina que antigamente a Terra vivia em eterna primavera, mas aí um cometa passou muito perto daqui, o que alterou o eixo de rotação do planeta, disso tudo resultando o término de nosso estado paradisíaco.

Um desses personagens fulgurantes é olhado mais de perto e por um período de tempo mais estendido durante o filme. Trata-se de Eduardo, Dream, Taumaturgo Ferreira, vizinho e amigo de Vina, aspirante a playboy nova-iorquino – mas, enquanto Nova York não chega, ele vai tocando a vida como feirante e tutor da mãe cega e demente (a velhinha vibra com a promessa do filho de que ele está juntando dinheiro para comprar uma televisão em cores para ela; Jorge Luís Borges falava da ironia de Deus, que havia lhe dado, ao mesmo tempo, uma biblioteca com cem mil volumes e a “noite”, a cegueira). Dream é um tipo gente boa, sempre eufórico (“extrovertido ululante”) em suas expressões de afeto, um garotão cheio de ginga, bróder pra lá, bróder pra cá, alguém que imediatamente nos cativa e por quem passamos a torcer, embora saibamos que o tipo não é lá muito confiável e que aquela ginga toda mal oculta o senso que ele tem da própria impotência existencial. Com aquela ideia fixa e delirante de Nova York, Dream se deixa levar pela conversa de um amigo barra pesada, Jacaré, Marcos Palmeira, a quem resolve acompanhar num assalto (Dream acaba arrstandoVina para a empreitada, embora este hesite consideravelmente em participar dela – acaba indo mais para tentar proteger o amigo, de quem conhece as vulnerabilidades todas). As coisas, é lógico, dão muito errado no assalto, Dream é baleado, passa uma noite debaixo de uma ponte em companhia de Vina, sem poder buscar assistência médica, dada a circunstância em que levou o tiro. Os dois acabam tomando o metrô, Dream já à beira da morte, “Vina, fala comigo, diz qualquer besteira”, ele diz, amedrontado, sentindo a vida se esvair de seu estropiado corpo (“Stop, David, I’m afraid, my mind is going, I can feel it”). A interpretação de Taumaturgo é bastante tocante, lamentamos sua morte como lamentamos a morte de Ratso Rizzo, Dustin Hoffman, em Midnight cowboy, John Schlesinger, 1969. (Como lamentamos, igualmente, a “morte” do HAL 9000 em 2001, Stanley Kubrick, 1968.) Ratso e Dream de fato se parecem, ambos adoráveis pequenos vigaristas com ambições semelhantes (Ratso, nova-iorquino, sonha com uma utópica e solar Flórida, Dream, carioca, sonha com uma utópica e feérica Nova York), ambos comovedoramente frágeis. (Lembro-me de ter visto na ocasião do lançamento do filme, 1988, uma entrevista de Taumaturgo para a jornalista Paula Dip. Taumaturgo disse que, para fazer a cena da morte de Dream, concentrou-se nos sentimentos de pesar que então experimentava em relação a um amigo que havia falecido recentemente, que a energia canalizada por essa focagem acabou lhe fazendo muito mal, etc.)

O caso do desaparecimento de Nicinha acaba se resolvendo sem a interferência de Vina – o delegado Freitas descobriu que a menina com cara de inocente vinha traficando drogas e a prendeu em flagrante. Concede que ela veja Vina tocando (com Cazuza) antes de levá-la para o presídio, já sabendo que “Orfeu” e “Eurídice” irão fugir. Sorri quando os dois elementos de fato empreendem a fuga. Freitas, deus do submundo (Hades), por certo sabe mais do que é dado aos comuns mortais saberem, daí que deve ter tido suas razões para agir como agiu. Atitude benevolente e paternal? Desprezo por contraventores tão chinfrins como aqueles? Ou ele simplesmente deu corda para que aqueles dois acabassem, de alguma maneira, se enforcando um pouco mais adiante? Quem sabe? Freitas deve saber. Nós, contudo, meio que boiamos com sua decisão.

Interessante que Vina, Guilherme Fontes, explicitamente protagonize o filme – tenha mais “posse de bola” –, mas que os coadjuvantes constantemente roubem seu protagonismo. Ao menos no quesito peso, “força gravitacional”, empuxo versus arrasto aerodinâmico. Milton Gonçalves particularmente o esmaga quando contracenam, como na aterrorizante cena do banheiro da delegacia, quando o pobre Vina tenta esconder debaixo do pé a ponta de um cigarro de maconha que caiu de sua carteira. Outro aspecto curioso do personagem Vina é sua considerável inibição sexual – no fundo ele não está muito aí para a namorada, perde o rebolado quando Betty Prado pede algo mais “vigoroso”, demostra um considerável conflito edipiano ao procurar, todo perturbado, não olhar para a mãe nos trajes mínimos com que ela se exibe no show “As Mimosas Eróticas”. Há, sem dúvida, um flanco inexplorado aí. Talvez se empreendêssemos a devida exploração acabaríamos encontrando, no fundo dessa caverna, o Nelson Rodrigues trepado num caixote de querosene jacaré pontificando que o brasileiro é um subdesenvolvido – não só como também, um subdesenvolvido sexual.

Acrescentando algo sobre Freitas (sem dúvida o personagem mais consistente e interessante da história), o esmagamento sistemático que impõe ao débil Vina pouco tem a ver como a diferença de tônus basal que há entre ambos. A verdadeira diferença entre um e outro reside no fato de que Freitas, nesse mundinho de insustentáveis levezas do ser do final dos anos 1980, ousa manter os pés firmemente plantados na realidade. Ele sabe que ser é ato, não uma substância estática dada a ser contemplada, que só conhecemos as coisas (e a nós mesmos, na medida do possível) quando não nos negamos ao papel de agentes no mundo (enquanto Vina insiste no erro de Narciso, que é o de congelar-se numa autocontemplação hipnótica e esterilizante). Freitas insiste em buscar desvendar as coisas que de fato ocorreram, pouco importando que o mundo tenha virado as costas à ideia mesma de verdade objetiva. E, de certa forma, tenta trazer o hesitante e assustadiço Vina para sua causa –sim, cooptar aquele garotão que sequer sabe lidar com mulher, “Esse negócio de paixão pra mim é coisa de veado, homem que é homem sente é tesão”, para que ele adira à “vida como ela é” talvez seja uma das ambições didáticas de Freitas. “Antigamente a gente tinha autoridade, garoto”, por fim ele diz, numa fala que pode parecer a mera lamentação de um membro do aparato de segurança pública que perdeu muitas de suas prerrogativas (com a redemocratização, etc.), mas que em sua camada verdadeiramente substancial é a fala cheia de sabedoria de alguém que sabe que o princípio da realidade não vai poder ser negligenciado por muito mais tempo, “Qualquer hora vão precisar da gente de novo”, profetiza ele. 


Sobreviver a uma catástrofe – sobreviver a um período de tempo especialmente ruim, por exemplo – pode nos dar uma sensação ilusória de que “o pior já passou”. Lázaro escapou da primeira morte, todos sabemos, mas certamente não escapou da segunda.(Períodos de tempo especialmente bons podem ser igualmente catastróficos; sempre ouvimos falar da sobrevida apática vivenciada por pessoas que tiveram algum grande apogeu logo no início da vida, apogeu esse que passou, aí a pessoa se arrastou por trinta, quarenta anos de um insopitável anticlímax.) Vinícius e Nicinha escaparam daquele aperto específico que vivenciaram, delegado Freitas, etc., assim como, muito provavelmente, acabaram escapando da realidade compressiva e deprimente do Brasil do final dos anos 1980, e assim foram indo, tocando o barco, anos 1990, anos 2000, 2010, 2020. Interessante imaginar o que a vida, passadas mais de três décadas, pode ter feito aos personagens de Um trem para as estrelas. Imagino Vina hoje: cinquenta e tantos anos, radicado em São Paulo já há tempo o bastante para ter incluído em seu vocabulário expressões como o famigerado “ô meu”; divorciado, três filhos, representante comercial (vende produtos para bebês – fraldas, chupetas, mamadeiras, etc.); não toca mais sax; não conseguiu parar com a maconha, apesar de algumas tentativas, o que muito lamenta, dado que sua memória atualmente se assemelha a um buraco negro; fez cirurgia bariátrica quando seu peso passou de 150 kg (bem magro quando jovem, não parecia que um dia Vina viria a ter sérios problemas de obesidade); não se dá muito bem com nenhum filho (um pretende-se youtuber, outro pretende-se designer de jogos de computador, outro é metido com grupos políticos radicais e faz transações nebulosas com criptomoedas). E, claro, imagino Nicinha: cinquenta e tantos anos, sem filhos, tentando sobreviver fazendo consultas astrológicas online; cabelos pintados em casa; teve uma fase meio ninfomaníaca, mas já faz quase cinco anos que não faz sexo (entrou em menopausa antes dos cinquenta e decidiu não fazer reposição hormonal, etc., etc.); duas falências no currículo; um curso de superior de psicologia não concluído (o que não a impede de apresentar-se eventualmente como “coach”). Isso posto, cabe aqui a pergunta: o pior já passou? Pois é, parece que “o pior” nunca passa. E o “pior” de antigamente, olhado com suficiente distanciamento temporal, já não nos parece tão ruim assim. Na verdade parece até bom.

De fato, é meio difícil dizer o que era caracteristicamente ruim em 1988 (a data, claro, é uma figura de linguagem que resume o período). Os fatos objetivos de então não parecem melhores ou piores do que os de qualquer outro tempo, afinal, a realidade sempre é composta por coisas boas e coisas péssimas. A ruindade de 1988 talvez estivesse menos nos fatos observáveis do que numa espécie de má vontade generalizada, infiltrante e debilitante, que contagiou todos os aspectos do real. Uma certeza, compartilhada por quase todo mundo, quanto à prevalência do pior. Uma espécie de niilismo barato, R$ 0,99, usado como moeda corrente, dinheirinho trocado para as pequenas despesas do dia a dia, dinheirinho fiduciário, dinheirinho sem lastro, nulo, dinheirinho de esmola, um monte de notas de baixo valor e um monte de moedas ensebadas (“Pô, qual é?, assaltou alguma igreja?”), Ferris Bueller dando uma notinha de cinco dólares ao hostess do restaurante besta de Chicago, o hostess olhando para a notinha com cara ne nojo, notinha de cinco dólares americanos, notinha de cem trilhões de dólares do Zimbábue, cada um por si, todo mundo na lona. Etc., etc. Talvez não exatamente por acaso existiu em Belo Horizonte, em 1988, uma boate de grande sucesso chamada The Great Brazilian Disaster. Talvez não por acaso a telenovela de maior sucesso em 1988 tenha sido Vale tudo, cuja sinopse pode ser enunciada como “pessoas mais ou menos horríveis fazendo o tempo todo coisas mais ou menos horríveis”. Talvez não por acaso o Bateau Mouche IV tenha naufragado na Baía de Guanabara no réveillon de 1988, num dos maiores tributos à negligência, imprudência e imperícia já vistos nesse país. (O caso Bateau Mouche, para além de sua concretude trágica, sua “tragédia de erros”, suas mortes, etc., revelou ter uma dimensão fortemente simbólica, de fatalidade, de inevitabilidade do pior, etc., simbolismo esse acabou ocupando o imaginário de um país inteiro.) Talvez não por acaso o humor brasileiro teve no período um de seus momentos mais férteis e desabridos (e engraçados) – se tudo vai irremediavelmente mal, talvez só nos reste mesmo cantar aquele tango argentino, “Pediatras peronistas elegem Nenem” (Carlos Saul Menem), ou a marchinha de carnaval “Wilza Carla explode na terça-feira gorda”, ou o grande sucesso de Oswaldo Montenegro “O humor engraçado de Mongol” (Oswaldo Montenegro e seu parceiro Mongol eram um dos mais frequentes alvos das gozações de O planeta diário).

E, sem dúvida, não por acaso o programa de TV de maior sucesso naquela época (estreou em 1989) foi o Documento especial, da Rede Manchete, que explorava o grotesco, o demencial, o extravagante, o horrendo, o “quanto pior, melhor”, programa cuja estética mundo-cão, circo de horrores, tinha razoável afinidade com o conteúdo explorado por Diegues em Um trem para as estrelas. A coincidência não é tão espantosa assim, já que essa propensão ao bizarro e ao monstruoso estava no ar, volatizada e atmosférica (Jean Baudrillard, um dos maiores intérpretes daquele tempo, dizia que por alguma misteriosa razão havíamos perdido nossas pulsões eletivas, nossas constelações de gosto, ficando no lugar apenas nossas repulsões, nossa negatividade, nosso rejeitar violento de tudo). Seria temerário afirmar isso na ocasião (como, aliás, era temerário afirmar qualquer coisa numa época tão insidiosa e escorregadia), mas não deixava de existir nesse culto ao desencanto radical e suas expressões mais tangíveis (o surfe ferroviário era uma delas, tema explorado, aliás, num dos episódios de Documento especial) a busca por um princípio de sanidade, ainda que por vias bem tortas. “Sim, a realidade é horrenda, mas ela é o que é. Pelo menos não estamos sendo enganados por nenhum desses charlatães que vivem dizendo belas e mentirosas palavras. Nunca mais ninguém vai fazer a gente de trouxa.”(O que é uma bobagem, claro. Sempre somos feitos de trouxas, de uma maneira ou de outra.) No quesito usos e costumes, trato entre semelhantes, todo mundo esculhambava todo mundo e isso não rendia processos a ninguém (o que pode soar como música para nossos contemporâneos ouvidos, dado que o ativismo judicial virou uma das pragas dos tempos presentes). Havia uma aspiração ao jogo aberto até mesmo na publicidade comercial, muito irônica (e divertida) no período, “Sim, bróder, é claro que a gente está te enganando, mas bola pra frente, relaxe e goze”. Todo mundo falava o que achava que tinha de falar e o.k., afinal um discurso é um discurso é um discurso, no fundo irredutível a qualquer outro discurso. O apelo (utópico, é claro) à liberdade irrestrita estava na boca até dos bisonhos menudos, que viviam cantando “não se reprima” (ao que acrescentávamos, “mate sua prima, com estricnina”). Tratava-se de liberdade, sem dúvida, ainda que meio capenga (e suspeita). (Livre como um táxi, como dizia o Millôr.) Em suma, havia uma interessante, ainda que arriscada, atitude de largar as rédeas, deixartudo correr pra ver simplesmente aonde a coisa ia dar. “A vida é uma vasta experiência que ainda não atingiu seus objetivos”, como está escrito-pintado num quadro do artista plástico Wesley Duke Lee (Wesley fez uma ponta em Cordélia, Cordélia, Rodolfo Nanni, 1971, no papel de um fotógrafo; seu desempenho é divertidamente péssimo, assim como divertidamente péssimo é o desempenho de Cazuza interpretando Cazuza em Um trem para as estrelas; nada contra não-atores esbanjando canastrice na tela, isso nos lembra o quanto nós mesmos somos canastrões em nossas vidinhas, o quanto parecemos desajeitados quando nos vemos gravados em vídeo, etc.). “Mil novecentos e oitenta e oito” foi uma vasta experiência que não atingiu objetivo algum porque a teleologia, a finalidade última das coisas, talvez não passe de uma ilusão, perniciosa como toda ilusão. 

(Ou não.)

O grande mérito daquele tempo talvez tenha sido o de não chamar o pior por outro nome, não o eufemizar. Nem Carlos Diegues, caracterizado por um “humanismo esperançoso” em boa parte de sua obra (a revista Mad, sem dúvida maldosamente, o chamou uma vez de Cacá Piegas), cedeu à tentação – não há qualquer concessão à esperança em Um trem para as estrelas. (Quer dizer, até há. Há saídas apontadas, prevalências, dado que não é a mesma coisa alguém ser “Vina” e alguém ser “delegado Freitas” – quem sabe mais, pode mais –, mas a coisa não chega a se materializar no filme como algo que pode ser chamado de esperança. Simplesmente porque isso não interessava muito na ocasião. Não só como também, nossos traumas relacionados à degeneração de autoridade em autoritarismo eram relativamente recentes, portanto era melhor manter a atitude de suspeita em relação a qualquer tipo humano mais autoral – ou seja, antes o anódino Vina assoprando seu sax do que um sargentão nos berrando “alto lá”.) Voltando à esperança: mesmo os episódios mais alegoricamente esperançosos do filme – a chuva de comida numa favela durante a crucificação de uma suposta “santa”, a decisão da personagem de Tânia Bôscoli de num único dia ir para a cama com todos os homens que conseguisse para gerar um filho independentemente de quem fosse o pai (alegoria de que a vida, apesar de tudo, deve continuar), mesmo esses apelos à esperança têm, nesse filme, um matiz marcadamente irônico, quando não mordaz – afinal, a decisão da bela Tânia é estapafúrdia, para dizer o mínimo, e a chuva de feijão e arroz não foi nenhum milagre, mas um simples descarte de comida estragada sobre uma favela, descarte sugerido, aliás, pelo delegado Freitas logo no início do filme, “deem tudo para os pobres, pelo menos eles morrem de barriga cheia”. 

Por não eufemizar o horrendo, Diegues realizou em Um trem para as estrelas talvez seu melhor e mais corajoso filme.

 

(29/09/2023) 


ALÔ, ALÔ, CHAMANDO, por Eduardo Haak

O SEXO É UM CARROSSEL DE MONGOLÓIDES A frase, excelente, é do escritor Marcelo Mirisola. Mirisola tem ao menos uma obra prima, o romance O azul do filho morto, de 2002. Tive alguns contatos com ele, em idos tempos. Era uma figura difícil. Uma reação típica de Mirisola: você o elogiava e ele te respondia com alguma ofensa, em tom tremendamente agressivo. Vi isso acontecer mais de uma vez. Apesar dessas farpas, que numa ocasião sobraram até para mim, nunca deixei de admirar sua inteligência e talento. As últimas coisas que soube dele foram alguns artigos muito bons que foram publicados na revista Bula. Por onde anda Marcelo Mirisola?

https://www.revistabula.com/autor/marcelo-mirisola/

 

OBITUÁRIOS DE BARES MORTOS O Fran's Café da Jerônimo da Veiga, esquina com a Iguatemi, era um Fran's como qualquer outro de uma então extensa rede, exceto pelo fato de que era comum você ver por ali o Sílvio Santos, geralmente sozinho, tomando um café depois de ter arrumado os cabelos no Jassa. (Na época Silvio tinha um Crown Victoria branco com a capota verde que ele mesmo dirigia.) Outra figura fácil era o Érick Jacquin, um então jovem e desconhecido chef que comandava o restaurante Le Coq Hardy. Eu estava nesse Fran's quando deu no Plantão da Globo que um Fokker 100 da TAM havia caído sobre o Jabaquara. (Coincidentemente eu também estava num Fran's, da FNAC da Pedroso de Morais, quando deu na TV que um Airbus da TAM vindo de Porto Alegre não havia conseguido frear na pista de Congonhas, etc.)


CARLOS MENEM DANÇOU ROCK AND ROLL COM A PERNA MECÂNICA DE ED SULLIVAN O Planeta Diário uma vez elegeu o Décio Piccinini "O bolha do ano". Sim, Décio era um bolha, mas pelo menos era um sujeito engraçado, especialmente quando fazia cara de tarado para as moças que iam dançar no Show de calouros do Sílvio Santos.


THOMAS PYNCHON O lote quarenta e nove a que se refere o título do livro é o dos selos supostamente fraudados pelo suposto sistema Tristero, sistema supostamente surgido na baixa Idade Média para combater, via terrorismo, o monopólio dos serviços postais exercido na Europa pela família Thurn und Taxis. O leilão do lote 49, de Thomas Pynchon, foi um dos deleites de minha atormentada e errática juventude.


BEIJE CAVEIRAS E COMA BARATAS PARA ENTRAR NO CINEMA BRASILEIRO Foi a chamada no Notícias Populares para a matéria sobre os testes de atores que José Mojica Marins vinha fazendo, em 1967.


LEA MARIA JAHN Lea é bonita (lembra, aqui e ali, a Vera Fischer), fotografa bem e parece ter potencial como atriz. Como humorista, hum, é aquela coisa millennial sem graça, o "gringo" que ressalta o que há de pitoresco no Brasil, stand up comedy, essas coisas que fazem os Eudes ("os colega da firrrma") se matarem de rir. Meu palpite é que Lea faria uma Fraulein estupenda se algum cineasta resolvesse refilmar Lição de amor, Eduardo Escorel, 1975. Mas não haverá refilmagem nenhuma e, quando o humorismo estiver definitivamente inviabilizado (já pegaram no pé dela por causa da boa e inofensiva piada do amigo judeu dado de presente), a bela Lea se engajará em alguma modalidade de proletarismo pós-moderno pra defender o aluguel, o plano de saúde e o arroz com tranqueira, como dizia Plínio Marcos.


VÁ AO TEATRO, MAS NÃO ME CHAME A máquina, de Adriana Falcão (mãe da Clarice, etc.), num SESC (Belenzinho?), em 2004. Lázaro Ramos e minúsculo elenco. Uma hora os atores subiam num gira-gira e ficavam lá, girando e falando. Havia menos de dez pessoas na platéia e dentre os dez estava o Paulo Autran. Autran, que com toda razão devia estar achando aquela peça uma bosta, uma hora acendeu um cigarro. Ninguém deu um pio.


J. R. EWING Parece que o ator Larry Hagman foi um dos primeiros militantes antitabaco entre o pessoal do showbiz. Realmente? Com aquele olhar bovino e aquela expressão de pateta no rosto não deve ter convencido ninguém. No final da vida teve que trocar o fígado, cachacista juramentado que era, como diria Odorico Paraguaçu. "Macaco, olha pro teu rabo", etc.


GUIA POLITICAMENTE INCORRETO DA LITERATURA Alexander Portnoy dialogando imaginariamente com sua mãe, via psicanálise, dizendo-se maravilhado com o fato de que, apesar de Sophie e de seu empenho em transformá-lo num "menino judeu obediente", ele não virou "uma bicha louca, dividindo uma cabana em Fire Island com um sujeito de rímel nos olhos chamado Sheldon; sim, é espantoso como, apesar disso tudo, eu tenha conseguido penetrar no mundo das boc…". (Portnoy's complaint, Philip Roth, 1969.)


(12/09/2023)

ALÔ, ALÔ, CHAMANDO, por Eduardo Haak

WESLEY DUKE LEE Wesley, 1931-2010, fez sua primeira exposição individual numa galeria no Conjunto Zarvos, em 1963. A cena em que Gabriele Tinti dá o bilhete azul (receita de Rivotril?) para a namorada sem graça em Noite vazia, Walter Hugo Khouri, 1964, foi rodada no Conjunto Zarvos, Avenida São Luís, 258. O mezanino e a escada rolante que aparecem em destaque no filme ainda estão lá. Caindo aos pedaços, como tudo no Centro. Olhando friamente, Wesley fez por aqui as mesmas coisas que Robert Rauschenberg fazia em Nova York, mais ou menos na mesma época. Uns troços com pneus carecas, entulhos, raquetes de tênis espatifadas, etc. A despeito disso, Wesley desenhava bem e dava pra perceber em seus trabalhos a agudeza e a exuberância de sua personalidade. Em entrevistas e em declarações públicas era insuperável. Arrogante, rude (e refinado, uma combinação incomum), engraçadíssimo. Era bonito e, explicitamente, um homme à femmes. Claro que seria canceladíssimo hoje. Seu feito mais objetivo foi ter sincronizado a mentalidade artística brasileira com o que então se passava nos mais avançados centros produtores de cultura. De tempos em tempos aparecem uns sujeitos assim, que fazem do Brasil um país menos provinciano. (Júlio Barroso, 1953-1984, desempenhou mais ou menos esse papel na música pop brasileira.) Não sei dizer se o saldo disso tudo compensou. Os dez mil “artistas” que as FAAPs da vida despejam por ano no mercado são Wesleys de quinta mão, quase sempre capiaus aportados em São Paulo que desconhecem a fonte de tudo que mimetizam. (O que há sessenta anos era surpreendente e transgressivo hoje é clichê rotinizado, etc.) No mais? No mais estou cagando para esse assunto desde 1993, quando vi na Bienal a pilha de palitos de fósforos do Cildo Meireles e a parede forrada com sacolas da Jac Leirner, obra essa que um monitor da Bienal que era uma mistura do Clodovil Hernandes com o Leão Lobo “explicava” para um grupo de crianças pequenas, excursão de escola, todas sentadinhas com as pernas cruzadas, etc.

CEMITÉRIO DA QUARTA PARADA DURA A coisa aqui no Quarta Parada Dura não anda moleza, ô meus. Os violadores de sepultura não dão trégua. Roubam até flor murcha. Foi o Mussum, com quem divido o túmulo do samba, quem me deu a dica, “vai lá e fala com o Jacíntis, Homem do Sapátis Brânquis”. (Esse Mussum está mais pra Seu Creysson, mas o.k.) Jacinto Figueira Jr., como todos sabem, está sepultado aqui. Quando vivo foi um comunicador que se dedicou a denunciar as injustiças e as violações. Morto devia continuar o mesmo, deduzi. Então fui até o túmulo do Jacinto. E – ó, que surpresa – o túmulo estava sendo violado. Os ladrões queriam levar os sapatos brancos do Jacinto. E Jacinto, uau!, estava tentando negociar com os elementos. (Não está muito diferente, o Jacinto. Apesar de ter se transformado num zumbi, sua expressão continua igual.) “Ô lindôs, esses meus sapatos são de estimação, por que não levam minha dentadura?”, ofereceu Jacinto. A negociação não deu certo e Jacinto, além de descalço, ficou banguela. Os ladrões levaram a dentadura. “Perdeu, playboy”, disseram os ladrões, gargalhando, antes de se evadirem. “Pense positivo, Jacintaço, ainda te sobrou o caixão”, eu disse, tentando lhe dar algum consolo. E prometi fazer uma rifa para repor os itens roubados. E tive a ideia de produzir uns novos programas do agora cognominado Jacinto Figueira Jr., o Zumbi do Sapato Branco. Já rodamos um piloto e a coisa está na fase de negociação com possíveis patrocinadores. Aguardem que vem coisa boa. Em breve nas melhores casas da banha e nas melhores casas do rambo, programado para matar. Vai um chopps e dois pastel aí? 

ZUMBI E aí, patrulheiros, quando vão começar a implicar com a palavra zumbi, dizendo que ela estereotipa e reduz a religião vodu haitiana a uma fábrica de mortos-vivos, além de aviltar a memória do Zumbi dos Palmares?

CAPAS DE PLAYBOY QUE NÃO EXISTIRAM, MAS QUE MERECIAM TER EXISTIDO Virginie Boutaud, em qualquer mês de 1986. Quem é coroa sabe, ô se sabe, quem é a Virginie do Metrô. E sabe o estrago que uma Playboy com ela teria feito quarenta anos atrás. 

CAPAS DE ELE & ELA QUE EXISTIRAM, MAS QUE FORAM INJUSTAMENTE ESQUECIDAS Patrícia Scalvi, em algum mês de 1987. Dentre as musas da Boca do Lixo, Patrícia sempre teve uma atuação mais discreta e assumidamente coadjuvante, embora ela tivesse lenha de sobra pra queimar como protagonista. Bela e excelente atriz. Vejam o episódio protagonizado por Patrícia e por Arlindo Barreto (“Bozo era movido a cocaína na TV”) em A noite das taras, 1980, e tirem suas conclusões. (Quem tiver a Ele & Ela com ela na capa digitalize e me mande, s'il vous plaît.)

PIADA VELHA Clodovil: Clô para os íntimos, vil para os desafetos e dou para todos.

(04/09/2023)


ALÔ, ALÔ, CHAMANDO, por Eduardo Haak

O SER E O TEMPO Se eu tivesse meios próprios e bastantes creio que me isolaria num apartamento antigo nos Jardins. Jogaria o celular fora e ligaria na tomada um telefone de discar da Siemens. Compraria uns equipamentos de som da Quasar, um Chevrolet Diplomata 1981, uma TV de tubo e um aparelho de videocassete. Poria pra passar o tempo todo gravações do Goulart de Andrade na Globo (Comando da madrugada, com aquela vinheta que tocava Sweet Lucy, do Raul de Souza). Consumiria as noites escrevendo cartas para mulheres nascidas entre 1963 e 1967. Receberia algumas dessas mulheres, ouviria suas lamúrias, diria que elas continuam lindas, ainda que não fosse (e provavelmente não seria) o caso.

O SER E O PORRA NENHUMA O ser, em sua indeterminação, se equivale ao nada. Só no tempo o ser se manifesta, ou seja, determina-se. (Hegel, né?) O irresolvido paradoxo de Aristóteles: as coisas existem como individualidades singulares e conhecemos apenas generalidades. A raiz da separação entre ontologia (o ser) e a epistemologia (o conhecer). Etc., etc.

DIREITA FESTIVA Descubro com considerável atraso que Ruy Goiaba (Rogério Ortega) está escrevendo em Crusoé. Ruy era a estrela do Wunderblogs.com, que era um coletivo de então (2004) jovens blogueiros "de direita". Na época o achava muito divertido e engraçado. Lê-lo agora me deu uma sensação de anacronismo, como se estivesse baixando algum mp3 no Limewire.

JACKASS FOREVER Vejo com algum atraso Jackass Forever, USA, 2022. O humorismo stunt do grupo também envelheceu. Muita exibição peniana e muita brincadeira com esperma, duas coisas que definitivamente não fazem meu gênero. O único dentre eles que continua engraçado é o Steve-O. A cena dele vomitando, pegando do vômito o dente postiço que caiu e colocando o dente no lugar é hilária porque claramente foi espontânea. 

EVH FRANKENSTRAT Deve ser porque estou ficando idoso (e um idoso chato), mas cada vez mais acho que as guitarras parecem brinquedos (T. W. Adorno disse quase exatamente isso num de seus ensaios, um dos poucos grandes acertos daquele careca comunista de merda). A foto de uma garotinha de uns nove anos dedilhando uma EVH Frankenstrat (a guitarra criada pelo Eddie Van Halen), que vejo no Instagram, parece confirmar essa minha suspeita.

PIADA VELHA Em 1984, Faustão anunciava no Perdidos na noite o lançamento do Condomínio Residencial Roberta Close, com a entrada principal pelos fundos. (Há-há, é a cara do Faustão essa piada.)

EINSTEIN ON THE BEACH Francamente, não tenho o menor saco pra papo de buracos negros, teoria da relatividade, velocidade da luz, etc. A escala em que tudo isso existe é inimaginável (ou precariamente imaginável) e tudo que é inimaginável é inconcebível. Esse assunto de física quântica e quejandos sempre redunda numa caricatura de inteligência que deveria impressionar pessoas de no máximo doze anos de idade. 

NÍGER Olha só, olha só, o Níger sendo palco de uma disputa geopolítica entre Eurásia e Ocidente. Sempre tive um certo fascínio por esse país, por sua miséria avassaladora, primitivismo, isolamento, etc.

ROARING TWENTIES Muitos amigos com covid em setembro de 2023. Essa nossa década de vinte periga vir a ser conhecida no futuro como os Roaring (rugido) Twenties por causa das tosses, corizas, expectorações, etc.

CAPAS DE PLAYBOY QUE NÃO EXISTIRAM, MAS QUE MERECIAM TER EXISTIDO Lilia Schwarcz, em setembro de 2023. A historiadora e antropóloga Lilia, bonita e enxutaça aos sessenta e cinco anos, poderia ser a capa da Playboy do próximo mês. Nas fotos ela apareceria fantasiada de Minnie Mouse, já que ter cara de ratinha é um de seus charmes. 

GUIA POLITICAMENTE INCORRETO DA LITERATURA Herculano respondendo ao pedido da prostituta Geni para que ele parasse de humilhá-la: "Nada te humilha. Você não passa de um mictório. Público". (Toda nudez será castigada, Nelson Rodrigues, 1965.)

 

(28/08/2023)


TERRA EM TRANSE, DE GLAUBER ROCHA, por Eduardo Haak

Dentre todas declarações delirantes que Glauber Rocha, 1939-1981, costumava proferir, já que ele parecia gostar do papel de trickster, faltou Glauber dizer que na verdade ele era um autor teatral elisabetano, um homem do século XVI. Na verdade não seria uma declaração delirante. Nem essa minha afirmação tem qualquer sombra de ironia. Terra em transe é teatro elisabetano até a medula óssea – os personagens, além de pesadamente “teatrais”, falam em versos brancos (uma espécie de, aliás, versos bem ruins). Seu tema, o exercício do poder e os conflitos decorrentes disso, é caro a Shakespeare, Marlowe, etc. Há também os elementos arcaicos, batucadas, cantorias em ioruba, ewá, ewá, majô, orgias, gargalhadas cínicas (de fauno de tapete, como diria Nelson Rodrigues) que completam o barroquismo atordoante oferecido ao espectador. Isso tudo rendeu num bom filme? Não, apesar da presença impactante dos atores Paulo Autran, Paulo Gracindo, José Lewgoy e, consideravelmente atrás destes, Jardel Filho. (Um monte de beldades ornamenta o filme – Danuza Leão e outras que não sei quem são, mas que são bonitas pacas.) (Aliás, nunca havia notado como Danuza e Mariana Weickert são semelhantes. Fiu-fiu pra elas.) Voltando aos apesares, apesar da fotografia inspirada de Luiz Carlos Barreto, das locações deslumbrantes no Parque Lage, dos depoimentos elogiosos de Martin Scorcese e David Byrne, apesar desses apesares todos, Terra em transe não é um bom filme. 

A boa história – quiçá a grande história – é centrada no bom personagem (quiçá grande). Jardel Filho, a despeito dos intensos esgares e dos supostos protestos de sua consciência, não passa de um pequeno canalha às voltas com grandes canalhas. Pretenso poeta, jornalista, aspone dos poderosos que estiverem mais à mão, sempre sugerindo estar com o passe à venda. Conhecemos bem o tipo. Poderia ser um bom personagem se nemesis devidamente o punisse. Mas ele termina como uma espécie de exército de um homem só, herói em stand by que oportunamente vai mostrar a que veio. (Conhecemos o tipo, também.) Raso e turvo, cheio de falsa consciência. De coisas assim que maus personagens (e maus sujeitos) são feitos. 

O brilho dos outros não chega a compensar Jardel. Lewgoy, Gracindo e Autran são calhordas em pleno exercício de suas calhordices. Mesmo que brilhantes, dramaturgicamente estão em homeostase. Gracindo é o magnata da imprensa que precisa sempre estar de bem com os poderosos. Lewgoy é o demagogo “de esquerda”. Autran é o ex-radical que hoje professa alguma bizarrice como “anarquismo cristão” (as imagens dele empunhando um crucifixo e uma bandeira preta são ótimas, deveriam estar no lugar daquela imagem do Jardel tapando a boca do pelego, que é a imagem mais conhecida do filme). Apesar do “anarquismo cristão”, Autran na verdade é chegado numa realpolitik da pesada. O povo que se exploda. Se você estende a mão a essa gente, logo vão exigir seu braço. Etc., etc. Poderia ser o personagem mais interessante do filme. Talvez seja.

Há uma ponta ou outra curiosa em Terra em transe. Flavio Migliaccio, o futuro desvalido oficial das novelas da Globo (pharmakós, bode expiatório), uma hora aparece gritando que ele na verdade é que é o povo, já que tem sete filhos e não tem onde morar. É enforcado por causa disso (no governo do demagogo “de esquerda” José Lewgoy, hem?) e, como se não bastasse, ainda enfiam o cano de uma arma em sua boca. (A arma na verdade estaciona em seus lábios, de onde pende como um cachimbo mórbido. Há, há, Flavio Migliaccio sempre se dando mal.) Clóvis Bornay fantasiado a caráter aparece na recriação da missa inaugural do Brasil, protagonizada pelo possesso Autran. Telma Reston, ainda sem os seios gigantes, aparece como favelada. Acho que o Pereio (que uma época andou dizendo que ia dinamitar o Cristo Redentor, etc.) também faz uma ponta, mas não tenho certeza.

O prestígio de Glauber, as confusões em torno dele e sua permanente encenação de gênio incompreendido foram muito deletérias para a cultura brasileira. Glauber, por exemplo, “deitou jurisprudência” para que Caetano Veloso realizasse seu péssimo filme, Cinema falado, de 1986, cinema novo pra lá de tardio. Contudo, pior do que isso é o fato de Glauber Rocha ter se consolidado como sinônimo de cinema brasileiro no imaginário coletivo. Pouco importa que não seja sinônimo de coisa alguma e que, comparado a outros cineastas, sua produção seja bastante modesta. Para não me estender demais em comparações, limito-me a compará-lo a Rogério Sganzerla, já que há afinidades estéticas entre ambos. 

Sabe-se lá por quais razões ou falta de razões, Glauber Rocha chamava o Rogério Sganzerla de menino egoísta. Pois Sganzerla fez em O bandido da luz vermelha o que Glauber foi incapaz de fazer em Terra em transe. Luz, Paulo Villaça, é um boçal assumido e J. B. da Silva, Pagano Sobrinho, põe no bolso o trio de canalhas do filme de Glauber. “No meu governo os pobres finalmente vão ter o que mascar, vou distribuir chicletes a todos”, discursa o esplêndido J. B., candidato à presidência da Boca do Lixo. Villaça não recua ante o “cumpra-se”, enquanto Jardel vaga pelo deserto (Barra da Tijuca em 1967) declamando seus flatus vocis, curtindo seu solipsismo e apontando sua metralhadora de brinquedo para o nada. O Bandido é uma sagaz, hilariante e cheia de dinamismo peça de humor negro e Terra em transe mal se aguenta nas próprias pernas por causa de todo entulho de que se constitui. Inteligibilidade é credibilidade, alguém já disse, e concordo. Saímos de Terra em transe atordoados, emacumbados, e saímos de O bandido gargalhando e dizendo yeah. Vocês que escolham que filme vão ver.

(21/08/2023)


ALÔ, ALÔ, CHAMANDO, por Eduardo Haak

1978 Ouvindo "O medo de amar é o medo de ser livre", de Beto Guedes, e vendo uma propaganda da VW Brasília, fulana que amava sicrano que amava beltrana, etc., fico com a sensação de que o tempo devia ter parado em 1978. Não sei o que eu quero exatamente dizer com isso. Não sei se faz algum sentido proferir uma afirmação como essa. Como seria isso, o tempo parado em 1978? Não sei. Mas creio não estar enganado ao dizer que o clima de 1978 tinha uma calidez que só podemos lamentar que, sabe-se lá por quais razões, já não exista há muito tempo. Impossível pensar num Beto Guedes de vinte e poucos anos compondo e gravando "O medo de amar" em 2023.

O LIXÃO O Lixão patrocinava o programa que o Mojica, Zé do Caixão, teve na Record em 1981. Era uma loja de móveis usados que ficava na Praça Marechal Deodoro. Seu logo usava uma tipografia estilo cartaz de wanted de velho oeste.

JACINTO LEITE AQUINO REGO O livro do Maurício Stycer sobre Jacinto Figueira Jr., o Homem do Sapato Branco, não é ruim. A pesquisa que ele fez traz algumas informações interessantes. Tem um buraco ou outro, como ele não mencionar o Homem do Cravo Vermelho, que Jacinto fez na TV em algum momento entre 1983 e 84. O mais legal é que, a despeito de Stycer e Bia Abramo (que assina a burocrática orelha), o livro capta e expressa até que bem a presença exuberante do "má viu, lindô".

DURVAL DISCOS Vejo uns discos de vinil na vitrine de uma loja na Rua Augusta. Tudo de 150 reais pra cima. Em 2001, 2002, as pessoas jogavam no lixo - literalmente - seus vinis, que eram vendidos em lojas de usados por 1 real (e dava pra achar muita coisa boa por 50 centavos). Lembro-me de uma reportagem na Veja São Paulo, mais ou menos dessa época, sobre a euforia das pessoas com o CD, que estava desbancando o vinil, etc. Uma fulana com cara de coelho aparecia numa foto, segurando um CD, o "Yellow submarine", dos Beatles. Ela havia comprado o CD mesmo sem ainda ter um aparelho para tocá-lo. Dizia a fulana que o disco de vinil era "tecnologicamente ultrapassado". Etc., etc. A Vejinha devia procurar a cara de coelho hoje, trinta anos depois, pra fazer uma nova reportagem. Aposto que ela ia aparecer segurando um vinil usado de "Yellow submarine", comprado por 250 contos, com um papo de que "o vinil tem um som muito mais robusto que o CD". ("Durval discos" é um filme de 2003, dirigido por Anna Muylaert. Um filme bem ruim cujo único atrativo é a Marisa Orth no auge da gostosura.)

ALIENAÇÃO Não faço a mínima ideia de quem seja Larissa Manoela e, passando os olhos por alto nas notícias, faço questão de continuar não sabendo.

NETFLIX Às vezes entro em alguma sala e a TV está ligada no canal Netflix. Bastam quinhentos milésimos de segundo para que eu constate, como todas as vezes: a Netflix criou um novo tipo de kitsch. O kitsch netflix. Está em tudo que eles produzem. Não deixa de ser um feito. 

CLICHÊS Por que quase todo mundo diz que é tímido? Eu, por exemplo, não sou tímido, embora em certas situações, eventualmente, me sinta intimidado. Normal. Outro clichê é o suposto elogio, "ah, fulano é legal, é um cara supersimples", geralmente usado para descrever algum ricaço que, vez ou outra, troca meia dúzia de palavras com o zelador, "e aí, Raimundo, o coringão ganha ou não ganha hoje?". Nada tenho contra pessoas complexas e, até mesmo, arrogantes. Pra dizer a verdade costumo gostar de pessoas assim.

JAVIER MILEI Milei é uma mistura do general Manuel Belgrano (o cabelo zoado e as costeletas), Carlos Menen (dolarização e costeletas, "Pediatras peronistas elegem neném") e Diego Maradona (as ênfases e aquelas cantorias no meio da rua com o zé-povinho, pulando e marcando o tempo com a mão). Milei vai ganhar a eleição com 100% dos votos.

GAROTO DO PARQUE Numa época, acho que entre 2007 e 2009, vi direto o ex-jogador Roberto Rivelino. Ia a um café e lá estava ele. Olhava para dentro de um restaurante e, batata, lá estava o Rivelino. Isso aconteceu umas cinco ou seis vezes. Que eu saiba não éramos vizinhos. Casualidade total. Seria caso de até jogar no bicho, apostar no coelho, 10 (o número de sua camisa).

TEORIA DA CONSPIRAÇÃO QUE NÃO EXISTE, MAS QUE VAI ACABAR EXISTINDO Elvis Presley supostamente morreu em 16/08/1977. Um dia antes, 15/08/1977, um observatório astronômico em Ohio, apontado para a constelação de Sagitário, registrou um possível sinal de vida extraterrestre, o tal do Wow! signal. A linha que mostra o tal sinal tem os caracteres 6EQUJ5, que, se observarmos com alguma atenção, aludem aos caracteres ELVIS - 6EQUJ5, 6EQVJS, 6EQVI5, 6ELVI5. Elvis, portanto, não morreu, mas foi abduzido e vive hoje num exoplaneta a 50.000 anos-luz do sistema solar.

CAPAS DE PLAYBOY QUE NÃO EXISTIRAM, MAS QUE MERECIAM TER EXISTIDO Bia Nunes, em qualquer mês de 1982. A atriz Bia Nunes nunca foi propriamente linda ou esfuziante, mas sua discreta beleza era daquele tipo que vai se infiltrando em nossa percepção até que um belo dia dizemos pra nós mesmos, "pô, essa fulana é altamente pegável, hem?".

GUIA POLITICAMENTE INCORRETO DA LITERATURA "Tenho um desprezo solene pelos pobres. A patuleia. A escumalha. Sujos, ignorantes, interesseiros, safados. Escrotos, como os vermes. Sempre engravidando. E engordando. E roubando e matando. E sendo atropelados." ("Valsa negra", Patrícia Melo, 2003.) 

(17/08/2023)

ALÔ, ALÔ, CHAMANDO, por Eduardo Haak

BARBIE ACUSA DONO DAS CASAS BAHIA DE VENDER SOFÁ JÁ TESTADO A vida não está mole pra ninguém. Desde que saiu de Barbieland e foi morar em Vicente de Carvalho, Guarujá, Barbie vinha tentando defender uns trocados vendendo na praia de Pitangueiras chá mate e biscoito de polvilho Globo falsificado. A família Marinho, que é dona da Rede Globo de Biscoitos de Polvilho e Televisão, não gostou nadinha dessa história e soltou os cachorros pra cima da pobre Barbie, que, privada de seu sustento, passou meses matando cachorro a grito. A situação só melhorou um pouco quando Barbie, já afônica de tanto gritar com os pobres cachorros, conseguiu um emprego de vendedora nas Casas Bahia. Contudo, logo começaram a ocorrer atritos com o patrão, o hebreu baiano ACM Klein, vulgo Carlo Mossy, que passou a insistir para que Barbie trabalhasse todo dia depois do expediente para que ela testasse todos os sofás da loja. Depois de muito sofá testado e depois de Mossy descumprir sua parte no trato, que seria rodar a continuação de "Giselle" tendo Barbie no papel principal, a moça resolveu botar a boca na trombone. (O que lhe deu um certo alívio, já que seus lábios relaxaram um pouco com a embocadura do trombone. Ficar botando a boca por muito tempo sempre na mesma coisa cansa, não é mesmo?)


LEVOU ROLEX NA BUNDEX O ajudante de desordens de Jair Bolsonaro, o sargento-coronel Mauro Cid Guerreiro, foi visto com uma pistola municiada com balinhas Tic-Tac tentando passar nos cobres um tique-taque da marca Rolex na praia de Toque Toque Retal, São Sebastião, SP, isso logo após ter se apresentado por lá com sua banda de axé marcial Chiclete com Banana de Dinamite. Leilão (ou Leilinha, para as íntimas), uma das vocalistas do grupo, acabou arrematando o Rolex por 60.000 volts (350.000 amperes, no câmbio hidramático do dia). Quando descobriu que o relógio era uma falsificação comprada na Galeria Pagé, Leila entrou em estado de choque e precisou ser submetida a várias sessões de eletroconvulsoterapia na cadeira do dragão do dr. Ustra, o famoso e brilhante eletroconvulsoterapeuta.


TITÃS, O ENCONTRO Alô, alô, ô meus! Aqui quem fala é o repórter provinciano Adoniran Baboseira transmitindo o show dos Titãs direto da Passarela Marcelo Fromer, no Itaim-Bibi, São Paulo, a cidadezinha caipira onde imperam o bairrismo, a fofoca e o "quem chifrou quem". O show, que faz parte da turnê Titãs Encontro, está bem bacanudo, embora a acústica dessa passarela não seja das melhores, muito barulho na Juscelino, tá ligado, mano?, especialmente dos motoboys costurando pela direita e fazendo o diabo com suas Hondas Titans. Outro problema é que o juiz da partida, Dulcídio Wanderley Boschilia, já expulsou cinco dos Titãs do palco e parece estar a fim de meter o cartão vermelho em todo mundo. (Corre a fofoca aqui na província que o Dulcídio não curtiu muito ter sido incluído na letra de "Nome aos bois" e resolveu se vingar.) O público parece não estar se importando muito com os problemas e acompanha o show com entusiasmo, cantando agora a plenos pulmões a modinha "Clitóris", essa edificante obra-prima do cancioneiro paulistano, quiçá brasileiro. (Paulistano raiz - raiz e burro pra caralho, né? - diz "clítoris", proparoxítona, assim como diz "estrupo" e "por causa que". A lista desses barbarismos é tão grande que daria pra encher o Morumbi, o Allianz Parque e o Itaquerão, que, o.k., são campinhos de futebol de várzea, mas que somados até que dariam um campão.) Bom, pessoal, eu já vou me recolhendo que nove da noite é hora de capiau ir pra cama (no meu caso o Cemitério da Quarta Parada Dura, onde moro no túmulo do samba em companhia do Borba, o gato, e dos restos mortais do Mussum). Vai um chopps e dois pastel aí?


CHAT GPT VENCE O PRÊMIO LITERÁRIO JABUTI Venceu o Grande Prêmio Literário Parati de F1 o piloto Chat GPT, da equipe Jabuti-Cágado-Cagado. Apesar de ter tido durante a prova vários problemas mecânicos em seu bólido, uma Parati LS 1985 em péssimo estado, Chat caiu nas graças dos jurados, que se renderam à grande inventividade de seus versos, versos como "o ônibus corre na pista, pau no cu do motorista, o ônibus corre ligeiro, pau no cu do passageiro". A próxima etapa do campeonato será o Grande Prêmio Nobel de F1, na Suécia, mas já corre à boca pequena que quem vai ganhar esse prêmio é uma escritora de quem nunca se ouviu falar, procedente de um país idem e que foi acusada de usar o Chat GPT para escrever seu romance mais desconhecido, "Clitóris", livro que narra um horripilante caso de mutilação genital, especificamente o caso de um titã que roubou um clitóris pra botar numa música.


(10/08/2023)





LUIS ALBERTO SPINETTA, por Eduardo Haak

Luis Alberto Spinetta, que viveu de 1950 a 2012 num universo paralelo chamado República Argentina, tinha aquela elegância tipicamente ectomorfa que o Stewart Copeland, baterista do The Police, também tem. (Os dois, aliás, são bastante parecidos.) Spinetta era cantor, compositor, guitarrista. Sua obra é deslumbrante. Não o conhecia até poucos dias atrás e desde então venho tentando entender por que um artista tão notável é (e vai continuar a ser) rigorosamente desconhecido no Brasil.

Quando vi pela primeira vez o álbum das Mercenárias que exibe uma cédula de quinhentos pesos argentinos na capa ("Cadê as armas?, lançado em 1986) tive aquela sensação que nos ocorre sempre que nos deparamos com algum símbolo que expressa uma verdade que nem sempre, num primeiro instante, conseguimos verbalizar. "É isso!", pensamos quando coisas assim acontecem. Mas "é isso" exatamente o quê? Um símbolo, como bem disse Olavo K. Langer, é uma matriz de intelecções. Não é propriamente isso ou aquilo. Disso - do símbolo - partimos em direção de algo. Algo ainda ignorado e não sabido.

A sensação de que uma nota de quinhentos pesos é uma imagem perfeita para um disco de uma banda brasileira chamada As Mercenárias, para além das suspeitas iniciais de uma simples e corriqueira provocação bairrista, tem a ver na verdade com a experiência de estranhamento que sempre, de uma maneira ou de outra, temos ao nos depararmos com qualquer coisa que venha da Argentina. Para o brasileiro, o argentino é o estrangeiro absoluto. E isso não tem a ver com qualquer tipo de birra, má-vontade ou preconceito. Parece mais uma lei, se não ontológica, ao menos psicológica.

Fazendo uma analogia com o "nada mais antigo que o passado recente" de Nelson Rodrigues, talvez nada seja mais longínquo do que aquilo que é relativamente próximo. Às vezes parece que do outro lado da fronteira - não qualquer fronteira, mas precisamente aquela que separa Foz do Iguaçu de Puerto Iguazú - não existe propriamente um país, mas uma galáxia a bilhões de anos-luz. 

A verdade é que os países (todos os países) se traduzem uns para os outros de modo precário, sempre. (Exceto por meio da literatura. Enquanto leio Borges não tenho dúvida de que me torno mais argentino do que o próprio Maradona vestido com a camisa dez. A música? A música não tem essa capacidade. Ao ouvir Piazzolla, a sensação que tenho é a de não passar de um turista, mordendo um alfajor Cachafaz e caminhando por Puerto Madero. O que não ocorre com Spinetta. Tentarei desenvolver isso.) 

Talvez não percebamos o quanto a Rússia, por exemplo, é incompreensível para nós, brasileiros, justamente por ela estar a mais de dez mil quilômetros de distância. Contatos entre países tão enormemente afastados dependem, sempre e necessariamente, de uma série de mediações. As diferenças são patentes demais, daí o exotismo (e seu principal subproduto, o estereótipo) se impor como o principal dos mediadores. É fácil nos iludirmos de que "conhecemos" a Rússia - basta apelamos à fácil e inevitável caricatura de vodca, alfabeto cirílico e balalaica.

A Argentina, porém, é um vizinho de porta. É próxima, sob esse e outros aspectos. Nossos idiomas são semelhantes. Luis Alberto Spinetta é um nome perfeitamente brasileiro (paulistano, ao menos). Jorge Luis Borges idem. Por que, então, essa experiência da alteridade radical, do "outro", irredutível a qualquer noção de proximidade? Uma hipótese: talvez a Argentina no fundo seja intraduzível para os próprios argentinos. E talvez o argentino saiba disso, daí sua neurose (e seu charme). (Walter Campos de Carvalho seria mais radical e diria que, a exemplo da Bulgária, a Argentina também não existe. Eu não vou tão longe assim.)

Claro que não há (nunca houve, nunca haverá) qualquer unidade sul-americana. O dueto de Fagner e Mercedes Sosa ("el tiempo pasa") só não é mais forçado do que o "encontro" de Astor Piazzolla e Tom Jobim. Charly Garcia perambulou um tempo por Copacabana, foi paparicado pelos Paralamas e acabou voltando, de mala, cuia e bigode bicolor, para sua Buenos Aires natal. Nada disso, é claro, nos impede de mirarmos, de tempos em tempos, nossos telescópios aos insondáveis universos que estão logo ali, do outro lado da divisa. Podemos descobrir coisas esplêndidas. E, em alguns casos, surpreendentemente familiares. Spinetta me soou "Clube da esquina" num primeiro momento. E num segundo também. Nenhum demérito nisso. Há semelhanças e diferenças entre ele e "nossos" mineiros.

As músicas de Spinetta são parentes (primas em primeiro grau) de "Cais", "Trem azul", "A página do relâmpago elétrico", etc. Têm o mesmo colorido harmônico, resultante do princípio de modulações modais. Mas Spinetta tem um espírito bem mais rock and roll do que seus parentes mineiros. E, ao contrário de Lô Borges e Beto Guedes, que cantam apenas razoavelmente, Spinetta é (era) um excepcional cantor. Quanto à originalidade, não creio que alguém tenha imitado alguém nessa história. Todos chegaram a resultados semelhantes trabalhando a partir de materiais que estavam no ar, fosse o ar de Buenos Aires ou de Belo Horizonte - Beatles, psicodelismo, jazz modal, etc. Quanto aos desdobramentos, os mineiros permaneceram atrelados a um jeito meio bicho-grilo de ser, diferente de Spinetta, que botou os dois pés numa espécie de século XXI já em 1983, no álbum "Mondo di cromo". (Para quem for ouvi-lo ou já o conhece, sugiro que observe o contraste entre esse álbum e o "Kamikaze", lançado apenas um ano antes. Eu costumo dizer que 1982 foi o último ano da década de 1970 e que a transição para 1983 foi meio brusca, súbita, traumática sob muitos aspectos. Esses dois álbuns do Spinetta dão testemunho disso.)

Estamos em 2023 e cada vez estou mais convencido de que a música é uma arte consumada, encerrada, que já deu o que tinha de dar. Existe entre nós um certo clima de Idade Média, em que inumeráveis artesãos das sonoridades, "anônimos do século XXI", desovam seus produtos no YouTube, com sorte são visualizados umas vinte vezes e "nada mais foi dito ou perguntado". A música com aquela ambição de ser um empreendimento fáustico, personalístico e que visava a originalidade por várias razões deixou de ser uma possibilidade. Hoje cada qual entoa o mantra e faz soar o raga que supostamente mais lhe convém. Sim, ouvir Spinetta (ou a turma do Clube da Esquina), hoje, talvez não passe de uma modesta escolha entre "ragas" supostamente mais convenientes (ragas são aquelas escalas da música clássica indiana, sempre as mesmas escalas, sempre ressoando os mesmos toiiiinnnsss, afinal as leis da física acústica são imutáveis). Sílvio Santos bem que podia ser o mestre de cerimônia desse abominável fim de festa. Qual é o raga, maestruuum? Barões da Pisadinha? Arnold Schoenberg? Ou Luis Alberto Spinetta? Em defesa desse último talvez eu só possa dizer que há escolhas piores, bem piores.

(Post scriptum: eu tenho a teoria de que os Beatles acabaram não por causa da Yoko Ono, mas por causa das musiquinhas pseudoindianas que o George Harrison se meteu a fazer a partir de 1966. Puta urucubaca aquilo, ô meu.)

(04/08/2023)



ALÔ, ALÔ, CHAMANDO, por Eduardo Haak

TEMPO DO ONÇA Sempre me pergunto por que "o" onça, artigo definido masculino. E terá esse onça algo a ver com once, "once upon a time"?


MÁ VIU, LINDÔ Ainda não li a biografia do Jacinto Figueira Jr., O Homem do Sapato Branco, escrita por Maurício Stycer, mas pelas entrevistas concedidas pelo elemento desconfio que ele não captou o essencial do biografado - o humor, o deboche, a ironia, o pendor para o non sense. Jacinto foi um notável protagonista da estética da violação e do mal-estar que entrou nos usos e costumes do Ocidente a partir dos anos 1960, mas sobretudo dos 1970 (e que foi moeda corrente entre nós até os primeiros anos do século XXI). Enfatizar em Jacinto "o homem que introduziu o mundo-cão na TV brasileira" é uma simplificação simplória.


COMANDO DA MADRUGADA Na verdade todas as figuras de destaque na mídia, no período que citei, exploraram a estética da violação e do mal-estar. (Quem não vê a continuidade entre "o mundo-cão na TV" e o ideário de grupos artísticos então radicais como o Fluxus - Joseph Beuys, etc. - é mulher do padre.) Lembro-me de um programa do Chacrinha em 1982 em que houve um concurso de quem comia mais bananas. A imagem de um sujeito obeso, suando frio, fazendo sinal de positivo, mastigando a quadragésima banana enquanto um médico tirava sua pressão me vem claramente à memória. Um caso de bestialidade narrado pelo Afanásio Jazadji, ele fazendo a suposta voz do animal implorando ao tarado, "vem, Terto, vem…". Goulart de Andrade mostrando travestis fazendo aplicações caseiras de silicone industrial (ou exibindo os cadáveres podres de PC Farias e da namorada sendo autopsiados). Em suma, coisas que estavam mais para happening e perfórmance do que para jornalismo informativo.


SUPLA E OS PUNKS DE BUTIQUE Divertidíssimo o nome da nova banda do papito. Outro dia me lembrei da banda Os Excomungados, especificamente da canção "Union Carbide dá amostra grátis pra dois mil na Índia". A canção se refere ao vazamento de um gás altamente tóxico ocorrido numa fábrica da Union Carbide em Bhopal, Índia, em 1984, que matou dezenas de milhares e sequelou sabe-se lá quantos.


COMPOSITORES O idioma inglês faz a distinção entre o camarada que escreve canções, songwriter, e o tovarisch que lida mais diretamente com claves de sol, bemóis, sustenidos, etc., esse, sim, o composer. Faz sentido e, às vezes, faz muito sentido. Sempre tenho vontade de rir quando qualquer Zé Mané que fica lá, proclamando suas frustrações amorosas numa musiquinha com dois acordes, é apresentado como compositor.


LOBÃO E HERBERT Eu tenho um palpite nunca aventado sobre a implicância do Lobão com o Herbert Vianna (superada, ao que parece). Observem as canções de amor dos dois. O discurso do Herbert é aquele interminável chororô do sujeito que não pega mulher nenhuma. Já o discurso do Lobão é o do homem autoconfiante que sabe que suas blandiciosas palavras de sedução vão colar, sempre. Indo no popular, Herbert é o Waldick Soriano e Lobão, o Wando.

 

CAPAS DE PLAYBOY QUE NÃO EXISTIRAM, MAS QUE MERECIAM TER EXISTIDO Graziela Gonçalves, em qualquer mês de 2006. Graziela é a viúva do Chorão, CBJr. Além de bonita, tem um jeito vibrante e despachado que me agrada muito. Vou com a cara da moça.


FILMES QUE NÃO EXISTEM, MAS QUE MERECIAM EXISTIR "Cancelamento", direção de Walter Hugo Khouri, 2023. Marcelo está envolvido com Ana, uma assessora de imprensa que só chega ao orgasmo quando é esbofeteada e xingada com determinados insultos na cama. (Os insultos são, para a sensibilidade contemporânea, B.O. total.) Marcelo se desinteressa por Ana ao conhecer Berenice, uma alpinista que ele conhece no Pico das Prateleiras, Itatiaia, RJ. Ana se vinga da rejeição de Marcelo acusando-o publicamente disso e daquilo (violência doméstica, etc.). A reboque de Ana, dezenas de mulheres aparecem fazendo a Marcelo acusações semelhantes (violência, assédio, estupro), o que faz ele acabar sendo preso. Algum tempo se passa ("corte de continuidade", na terminologia de roteiro cinematográfico). Ana, apesar de tudo, ainda é intimamente apaixonada por Marcelo. Decide então corromper um agente penitenciário para que possa fazer, com identidade falsa, visitas íntimas ao ex no presídio. Após alguns encontros íntimos pautados pelo constrangimento mútuo, Ana finalmente se solta e implora a Marcelo, "me bata, me xinga daquelas coisas todas". Fim.


PIADA VELHA Qual a diferença entre a mulher e o disco (de vinil)? É que o disco você põe no buraquinho pra ele cantar e a mulher você canta pra pôr no buraquinho. (No embalo dessa, vai outra, tirada de um dos discos do Costinha: mulher (feia) é que nem violino, você vira a cara e taca a vara.)

(30/07/2023)



ALÔ, ALÔ, CHAMANDO, por Eduardo Haak

A PROVÍNCIA DE SÃO PAULO Bom dia, ô meus! Quem escreve aqui é o colunista dessa ilustre folha, Adoniram Baboseira de Ulhoa Bela Cintra. Como todos sabem, São Paulo é uma cidadezinha provinciana onde moram vinte e cinco milhões de paulistanos - um arrabalde onde imperam a fofoca, o diz que me diz, o "quem chifrou quem" e o bairrismo puro e simples. Estava ontem eu no meu cafofo no Cemitério da Quarta Parada Dura (com o valor do IPTU resolvi morar num túmulo, especificamente no túmulo do samba, de onde recentemente foi exumado o sambista trapalhão Mussum) em companhia do meu gato, o Borba. Borba Gato é um felino muito simpático, mas ficou meio arredio depois que uns malfeitores puseram fogo na estátua dele, acusando-o de ter escravizado uns índios BDSM numa masmorra sadomasoquista em idos-índios tempos. Como eu dizia, estava eu no meu túmulo conversando fiado com o Borba quando vi, vocês nem imaginam quem, a divindade greco-paulistana Jovem Pã, o desencadeador do pânico, da agorafobia e das transmissões radiofônicas em amplitude modulada. (Jovem porque esse Pã é "de menor", tá ligado, mano?) Perguntei ao Jovem Pan, "Firmeza aí?". Ele respondeu, "É nois na fita". "Tá colando aqui nessa quebrada por quê?", perguntei. Pan então me disse que tinha feito um pacto com os Demônios da Garoa e que precisava discutir uma das cláusulas do contrato. "Demorô", respondi, "bora lá que os caras são meus chegados". Saímos do cemitério e fomos andando, andando, até que chegamos ao centrão, onde batemos um papito com o Supla e tivemos os celulares roubados catorze vezes. Entramos no Viaduto do Chá do Santo Daime e, entre uma miragem e outra (numa das miragens vimos um grupo de 51 Jânios Quadros e 51 Lulas correndo a São Silvestre e trançando as pernas), fomos recebidos pelo prefeito, qual-o-nome-dele-mesmo?, que nos informou que não estava mais empresariando o grupo Os Demônios da Garupa, grupo que na verdade é uma dupla de motociclistas assaltantes. Jovem Pan ficou tão desconsolado que o prefeito dessa cidadezinha provinciana que é São Paulo ainda tentou animá-lo contando uma fofoca das boas, "meeeu, você nem imagina quem eu vi ontem saindo de um motel na Ricardo Jafet". 

 

TE VEJO NA MTV Dou umas espiadas na série de encontros entre Gastão Moreira e Fábio Massari falando sobre os bons e velhos tempos. A série tem o nome "O lado B da MTV". Sei lá, bróder, com esse nome eu esperava umas fofocas altamente desabonadoras sobre fulano, sicrano ou beltrano ("aquela DJ era a maior piranha, deu pra meia MTV"), mas a coisa infelizmente não vai por aí. Gastão e Fábio, cinquentões a caminho da sexagenariedade, continuam sendo bons meninos, deslumbrados cultores das minúcias efêmeras da cultura popular (estou cada vez mais bronqueado com a palavra "pop"). Dá um certo horror constatar como tudo que se relaciona à MTV Brasil envelheceu, e envelheceu meio mal. 


COSTINHA Vejo "Carnaval barra limpa", J. B. Tanko, 1967. O filme é irregular. A trama é boboca e os números musicais, muitos e chatos, fazem a coisa se arrastar um pouco. Mas há curiosidades, como a presença de Carlos Eduardo Dolabella, Emiliano Queiroz e Ari Fontoura, esses dois últimos bastante subaproveitados no filme. Rossana Ghessa está gostosíssima como camareira do hotel onde a trama se desenrola. E Costinha está esplêndido, as usual. Sempre que começo a me sentir angustiado demais com a condição humana, kirkegaardiano demais, vejo cinco minutos de Costinha e, bah, me reconcilio totalmente com o universo.


(A propósito, J. B. Tanko, croata que se radicou no Brasil depois da Segunda Guerra, tem uma história das mais interessantes e devia ser biografado. Foi assistente de Leni Riefensthal, etc., etc.)


ITALIA PIÙ BELLA Impressionante como tem gente bonita na Itália (Rossana Ghessa, etc.). Não entendo como, com essa gente bonita toda, a taxa de natalidade italiana não vá às alturas. Como dizia o Millôr, beleza não põe mesa, mas desarruma a cama.


CAPAS DE PLAYBOY QUE NÃO EXISTIRAM, MAS QUE MERECIAM TER EXISTIDO Paola de Orleans e Bragança, em qualquer mês de 2007. Paola, por uma regra nobiliárquica a que está sujeita por ser uma Orleans e Bragança, nunca se exibiu nua ou sequer insinuou nudez quando foi modelo. E quer saber? Paola é tão gostosa que não faz diferença aparecer pelada ou não. A Playboy podia ter inovado ao colocar na capa da revista uma "coelhinha" que aparecesse rigorosamente vestida no ensaio fotográfico. Se bobear bateria recordes de venda.


PÁSSAROS A ideia pueril de que o pássaro na gaiola fica triste e que o ato de voar o deixa em êxtase. Imagino o estresse que o pássaro "livre" deve experimentar. O tempo todo tendo de ir atrás do que comer. O ato de voar (e cantar) minando suas poucas reservas calóricas. A necessidade de se abrigar, sempre de modo precário, contra o frio. A exaustão sempre à espreita. Se eu fosse um canário queria mais é ser enfiado numa bela gaiola e ser servido com bastante alpiste. 


Mudando de pato pra ganso, já notaram como o canto dos pássaros se parece com a música eletrônica? Estou falando eletrônica "Karlheinz Stockhausen". A ruidagem, a descontinuidade, etc. Edvard Grieg supostamente mimetizou o canto dos pássaros "numa bela manhã de primavera" em "Peer Gynt", mas Grieg sabia tanto de pássaros quanto o Tião Macalé sabia de cálculo integral. Já Olivier Messiaen mostrou que entendia do riscado. Ouçam sua obra "Catalogue d'oiseaux" (mas não ouçam muito, porque a experiência de estranhamento proporcionada por essa obra não demora muito a ceder a uma sensação de tédio e de mesmice). 


YOUTUBE Coisas legais no YouTube. Fragmento de meia hora de uma aula de Olavo de Carvalho intitulado "As tendências e vícios humanos". Nos últimos anos de vida Olavo perdeu o pé com as maluquices que constituem o imaginário da "nova direita", propagou asneiras a rodo ("Theodor W. Adorno compôs as músicas dos Beatles", etc.), o que acabou afastando antigos apreciadores de suas exposições eminentemente filosóficas (eu, por exemplo). Nesse trecho de aula Olavo faz uma das mais abrangentes e eruditas exposições que já vi sobre as principais correntes da psicologia no século XX.


Outra coisa bacana é o canal "Filosofia Vermelha", de Glauber Ataíde. É um prazer ouvir um marxista culto, inteligente, highbrow, nem um pouco afeito a estereótipos, um sujeito que ouve death metal em vez de Chico Buarque. (Glauber fisicamente é uma mistura do Leon Trotsky com o Ho Chi Minh. Se Michael Cimino pusesse a foto de Glauber naquele casebre onde os VCs obrigaram Robert de Niro e Christopher Walken a fazer roleta russa, lhes berrando "mao!" e lhes desferindo bofetadas na cara, ninguém ia notar qualquer diferença.)


PIADA VELHA "Fulano" é que nem papel higiênico, quando não está na merda, está no rolo.

 

(25/07/2023)